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Poesia

Todos os Poemas

Paul Auster. Tradução de Caetano W. Galindo. Companhia das Letras, 352 págs., R$ 49,50.

Na página 197 de Todos os Poemas, de Paul Auster (Companhia das Letras, tradução de Caetano W. Galindo), deparo com três versos que iluminam meu frágil caminho: "Quando parares nesta estrada,/ a estrada, dali em diante,/ desaparecerá". Os versos aparecem em "Braile", poema de Escritos na Parede, reunião da poesia que Auster escreveu entre 1971 e 1975. Eles vêm entre aspas – como que ditados ao poeta, e não por ele escritos. Surgem como uma advertência, mas também uma iluminação, que agora me ajuda a penetrar em sua densa escrita poética.

Braile, palavra alçada ao título, é o sistema de leitura através do tato utilizado pelos cegos. É uma escrita "material", em que o tato (contato direto com a matéria) substitui a fluidez da visão como via de acesso à mente. Adverte-nos Auster: não importa o caminho, se visão (imagem), ou tato (corpo); quando deixamos de percorrê-lo, ele desaparece. Os poemas (e as realidades que eles descerram) não existem fora de nós, mas dentro. A realidade não é o real – não é a matéria, que sempre nos foge. Mas o modo (o estilo) como o acessamos.

"A linguagem não é experiência. É um meio de organizar a experiência", nos recorda o poeta nas inspiradoras "Anotações de um caderno de rascunhos", parte final do livro. A linguagem faz um movimento duplo: ela nos dá o mundo – o único mundo possível –, mas também nos tira o mundo – o mundo real, que nos foge todo o tempo. Como alguém que, ao mesmo tempo, nos presenteasse, mas também nos roubasse. E é com esse instrumento de caráter duplo que devemos nos virar.

"Sentir-se alheado da linguagem é perder o próprio corpo", anota Auster. "Quando as palavras falham, você se dissolve numa imagem do nada. Você some". Voltando ao verso inicial, a estrada só existe se a capturamos. Se não chegamos a fazer isso, ela desaparece. Ela não existe. Toda a poesia de Auster gira em torno desse dilema humano. Estamos presos à matéria. Emparedados. A matéria (que é pedra), assim como o corpo (carne), se mantêm indiferentes a nossas visões e a nossas palavras. Se não dermos um nome ao coração, ou ao cérebro, se não dissermos "coração", ou "cérebro", eles continuarão a existir, ignorando nossa impotência em nomeá-los. Continuarão a existir: mas não para nós, que fomos incapazes de lhes dar um nome.

A poesia, em consequência, é como uma gaveta em que o poeta acumula as palavras com que consegue designar partes de sua existência para, assim, tomar posse dela. Muitas vezes, tantas vezes, só conseguimos ver, sem nomear. Está na parte 11 de "Desterrar": "O céu em teu nome – escorregando/ por escapas de azul: o céu/ sobrerrugindo o trigo". Nada sabemos desse céu, que se move sobre nossas cabeças. Diz o poeta: "Não peças – o quê. Cala/ vê". Coisas silenciosas deslizam em torno de nós, sem que possamos fisgá-las. Na aflição do silêncio, pedimos que alguém fale e nos proteja. Está na parte 12 do mesmo livro: "Pedes/ palavras minhas, e/ vou dizê-las – assim/ que aprender/ a dar-te nada". Palavras nada são diante da autonomia do real. Contudo, sem elas, não existimos.

As palavras são a rede com que capturamos uma borboleta, mas através de cujos furos a mesma borboleta nos escapa. Esta captura que falha é a existência. As palavras nos colocam diante do vácuo – imensa bolha insensível – que nos separa do mundo. Daí enfatizar Auster, para que ninguém se iluda: "O mundo está em minha cabeça. Meu corpo está no mundo". Um está dentro do outro, um é o limite do outro. Mais à frente, prossegue: "O mundo é minha ideia. Eu sou o mundo". A linguagem (poesia) em que nos duplicamos é um instrumento, simultaneamente, de acesso e de repulsa do mundo. Falar é aproximar-se, mas também afastar-se, já que não há fala sem fracasso. Escrever poemas é capturar partes do mundo e dar-lhes uma forma; mas é também permitir que todo o resto nos escape.

Grande distância, grande abismo, mostra-nos Auster, que, contudo, é o que nos torna humanos. Em "Interior", ele esclarece: "Na impossibilidade das palavras,/ na palavra não dita/ que asfixia,/ eu me encontro". Dizendo de outra maneira: só me encontro quando silencio. Só quando me entrego à arbitrariedade do corpo e à moral de pedra da matéria, enfim sou. Contudo, ainda não sou humano. É só nesse salto à frente – avanço teimoso sobre a parte da estrada que ainda não consigo ver – que me constituo homem. Não caminhando sobre a realidade, mas caminhamos sobre nós mesmos. Fazer poesia, então, é alargar-se.

Volta e meia, Auster se refere a Babel, a imensa torre que, no "Gênesis", tem sua construção rumo ao céu (perfeição) impedida pelo embaralhar louco (imperfeição) das línguas. Em Babel, embora todos falem, ninguém se entende; lá as palavras de nada servem. Para Auster, porém, Babel é também um sorvedouro que suga todas as palavras, revelando sua origem arbitrária e fraudulenta. Está em "Escriba": "O nome/ escapou-lhe dos lábios: sua fala o verteu/ noutro corpo: achou de novo seu espaço/ em Babel". Ao falar (escapar dos lábios), permitimos que as palavras se dissolvam no caldeirão de enganos e enigmas que definem a linguagem. Só o silêncio está próximo da perfeição. Contudo, ele nos prende no corpo, nos empareda na matéria bruta – e nos desumaniza. Resta falar, escrever e errar, como se estivéssemos sempre na imensa torre bíblica.

Escreve Auster, em "Sombra a sombra": "Por penetrar o silêncio deste muro,/ tenho de me deixar para trás". Para retornar à matéria pura (ao real), o homem precisa abandonar sua humanidade. Continuará preso ao corpo anatômico e ao destino cósmico, ambos indiferentes e inacessíveis. Mas não poderá dizer que viveu, isto é, que dissolveu-se na língua. A queda do homem, nos diz o poeta, "não é uma questão de pecado, transgressão ou depravação moral". Sim, ela é uma imperfeição que, no entanto, define o humano. Somos todos seres caídos. Diz Auster que a queda é "a queda do mundo no verbo, a experiência descendo do olho para a boca. Uma distância de sete centímetros". Um intervalo de apenas quatro dedos que, no entanto, nos arranca da pedra.

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