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A memória é uma armadilha. Na aparência, ela é a única via de acesso confiável ao passado pessoal. Mesmo os documentos podem ser adulterados, ou lidos sofregamente. Mesmos as fotografias podem dissimular, ou falsificar o real. Mas a memória — ah, ela é muito pior! Com sua aparente nitidez, seu ar majestoso de verdade, ela nos engana e derruba. Com seus sopros, nos embriaga e traz a ilusão do "tudo saber". Nada melhor do que desconfiar da memória. Não há instrumento melhor para desconfiar da memória do que a ficção.

É da memória, todo o tempo, que trata na escuridão, amanhã (assim mesmo, em minúsculas), romance de estreia de Rogério Pereira. Origens, infância, família, formação — todos esses elementos que constituem um homem. É porque sofremos da memória que nossa vida parece, tantas vezes, um pouco à deriva. Laços nos escapam. Vínculos se revelam deformações. Fios se esfumaçam e rompem com o avançar do tempo. É com esses elementos perigosos que Rogério trabalha. É com eles que ele abraça o grande risco da ficção.

Seu romance se desenrola em um tempo elástico, um tempo que vai e volta, em ondas. Tensão e distensão, alargamento e contração. Tudo em busca da origem. Um pai que arranca os filhos da terra, como plantas, e os carrega para "C." (Curitiba?), a cidade e seu grande vazio. O mesmo pai que destrói os filhos, também, com as palavras — as palavras não como tijolos de uma arquitetura firme, mas como armas. "Não te bastava o pecado. Queria nos destruir também com a palavra". Não a "palavra faca" entrevista por João Cabral: aquela que arranca nacos para dar a ver. Mas a palavra que sufoca e cala. Que sangra para que o silêncio se imponha.

Uma família marcada pela impossibilidade do perdão, como se não houvesse nunca a chance de começar novamente. A mãe, na cama do hospital, está muito parecida com os filhos: esvaziada. "Era impossível o perdão. Melhor carregar o ódio a explodir". Um romance que trata de tensões, que faz das tensões — mesmo as mais desagradáveis — seus personagens principais. Um livro tenso, escrito em uma linguagem que beira a poesia. Um livro escrito com poesia e agonia.

Enquanto o pai é um tirano, os filhos — ecos longínquos de Raduan Nassar e de sua Lavoura Arcaica — são marionetes. Bonecos sem alma. No lugar da alma, a dúvida: "Deveríamos tê-lo enfrentado. Uma única vez. Seria diferente? Duvido". Uma realidade que ninguém pode mudar. Mundo que se define pelo inalterável. Mundo feito de pedra. Pedra não dói? A resposta está na epígrafe tomada de W. G. Sebald: "Ninguém pode explicar exatamente o que acontece dentro de nós quando se escancaram as portas atrás das quais estão escondidos nossos temores de infância". Memória: terreno do inexplicável. Terra daquilo que não se pode dizer. Penso numa grande amiga que gosta de usar uma expressão tomada da linguagem dos aviões: "caixa preta". Talvez daí, dessa caixa indevassável, venha o "C." que nomeia a cidade.

Na adolescência, o mundo se torna ainda mais impreciso. Quanto mais se pede nitidez ao mundo, mas ele se encolhe e grita: "Afaste-se!" Mais ele se esquiva da palavra que, mesmo quando dita, imprecisa também é. A mãe gostava da palavra "esganifado", neologismo por ela inventado que o filho herda com assombro. Também Rogério Pereira faz uma literatura "esganifada", que se desenrola movida pelo desejo (cruel, porque impossível) de devorar o passado. "Esganifado" talvez remeta a "esganiçado": agudo, áspero, estridente.

O pai traz a família para a cidade para "escapar da vigilância de Deus". Há uma sombra metafísica que envolve toda a narrativa e que deixa o relato ainda mais escuro. "Deus nunca teve muito tempo para nós. Talvez não soubesse o caminho até o nosso solo infértil". A mãe os ensina a rezar. "A língua destrambelhada apenas insinuava as orações, engolíamos pedaços de santos e anjos. Deus nos afogava". A própria fé se torna turvação. Mais uma imensa pergunta sem resposta do que uma resposta. A distância da fé, porém, é o verdadeiro lugar do inferno. Daí, mesmo aos trancos, a persistência nas orações.

O romance de Rogério transita pela tradição católica, mas seu Deus parece ser apenas uma metáfora — quebradiça e vaga — da lei. Algo que resta. "Se Deus não nos vê, quem nos verá?" Há o constante retorno ao lamento de uma luta abandonada. "Deveríamos ter lutado para afastar a tua pata de nós, principalmente dela. Não tive força. Sempre fui um fraco. Todos fomos". Personagem que se depara com a própria fragilidade, este filho narrador pelo menos consegue balbuciar sua derrota. Este balbucio é o livro que temos nas mãos.

A vida na cidade tem regras em excesso, é artificial demais, é muito protocolar. "C." tem a aparência de um teatro da tradição, no qual faltam o impulso e o excesso. Ao herdar a culpa do pai — que é, na verdade, seu grande tesouro e a origem de seu poder —, os filhos reafirmam a própria derrota. Ao longo da vida, experimentam estranhas formas de castigo, como a prisão debaixo de um barril — uma pólvora quase a explodir, mas que fica no "quase" e não explode. "C.", com suas regras, é outro retrato do inferno, onde ninguém chega a ser, onde todos se limitam ao desempenho. Teatro, do pior gosto, outra vez. Um mundo "esganifado" e falso.

A metafísica, assim, se mistura com a ignorância. Há uma metafísica da ignorância a reger o destino da família, pois é da fé no obscuro que mãe e filhos retiram suas parcas forças. Uma armadilha que jamais é desarmada, uma prisão perpétua: um enigma. Uma vida sem saída, tramada no ranger de cadeados interiores, que se manifestam na impossibilidade de conversar. Cada um preso dentro de si; cada um é sua própria cela. Uma vida dolorida, que nos entrega uma narrativa dolorida também, na qual a troca e o avanço não passam de um sonho esfarrapado.

Não há dúvida de que, na escrita de na escuridão, amanhã, Rogério Pereira, o próprio autor, se coloca em risco. A escrita solta faíscas. A alma range. Muitas feridas estão expostas através do recurso da metáfora. O escritor, ao se oferecer de corpo inteiro à literatura, corre perigo ele também. Mas haverá literatura sem perigo?

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