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Prosa

A Calma dos Dias

Rodrigo Naves. Companhia das Letras, 176 págs., R$ 34

Encontro meu avesso, meu contrário, no crítico de artes e escritor Rodrigo Naves. É uma experiência intensa, que causa aflição, mas que também — se sabemos digeri-la — serena e alarga o espírito. Então é possível preferir o oposto daquilo que se prefere. Os homens são muito diferentes entre si e não há limites para os rumos do olhar. Leio seu A Calma dos Dias. Sempre acreditei que por detrás da literatura — da arte — movem-se intenções secretas. Que o escritor busca uma coisa, mas faz outra, porque algo que ele desconhece — mas que está ali todo o tempo — o empurra para isso. Que escrever é estar atento a esse desfiladeiro de intenções sigilosas, conectar-se com ele na medida do possível, lidar (ou não conseguir lidar, mas fazer algo) com isso e disso.

Aí esbarro em textos nos quais Rodrigo defende exatamente a experiência oposta. A Calma dos Dias reúne uma longa série de textos curtos que vão da reflexão pessoal à crítica de arte. Todos eles escritos de modo firme e substantivo — como se caracteriza a escrita de Rodrigo Naves. Em "Ao Relento", um dos textos em que está tudo dito de forma bem clara, ele escreve: "Experimento o mundo pelo lado de fora. São-me estranhos intenções, processos inconscientes, maquinações de qualquer ordem. Têm a casca lisa e brilhante as laranjas azedas que tanto aprecio". Rodrigo é um homem que busca o mundo aberto, dos ventos, dos imensos mares, das paredes nuas — que aparecem na bela capa de seu livro. Busca o frescor do sol e a umidade da noite. "Andar atrás de causas profundas é procurar abrigo que nos livre da vida ao relento", escreve. Encara a arte como uma experiência dos sentidos.

Não é um escritor arrogante, que esfregue na face dos outros suas teses e pensamentos. Pelo contrário: faz sempre ressalvas que vão contra si mesmo. Diz por exemplo: "Talvez seja essa também a razão de depender em demasia dos outros. Por poder me olhar apenas parcialmente, vejo-me tão só nas alterações que provoco, como vejo elevar-se a água da banheira". Poeta do sensível e da matéria, Rodrigo Naves defende não só com elegância, mas com pudor seu ponto de vista. Cuidados que só engrandecem seu pensamento.

Na página seguinte, em um texto curto, mas lancinante como "Instinto", ele nos fala do pavor que a matéria crua é capaz de provocar. Das reações intensas, radicais que, no entanto, não necessitam das palavras — e da profundidade, pois onde se fala em palavra, fala-se sempre de uma escavação. Lembra Rodrigo que no campo as reses mortas costumam ser erguidas em traves nos altos de pequenos morros. "Se não for separado do animal sacrificado num curral à parte, o resto do rebanho é tomado por um pavor tão profundo que por vezes não se consegue detê-lo". Uma imagem — uma "casca" —, crê Rodrigo, vale por mil palavras. A matéria impera onde se consegue suportar a serenidade e o silêncio.

Para Rodrigo, as obras de arte não falam. "Obras de arte são obras de arte e não bonecos de ventríloquo". Guardam uma resistência, uma rudeza que as aproxima das coisas do mundo material. As coisas tomam corpo não por intenções, mas "por acréscimo". Diz, em outro texto forte, chamado "Formalismo": "Não se chega a uvas a partir do vinho, mesmo que os procedimentos para sua obtenção sejam seguidos passo a passo, de trás para a frente." As intenções e a desmontagem não trazem de volta o objeto que desapareceu. E o mundo é composto de objetos, que se perfilam à nossa frente e nos são indiferentes.

Muito radical é o apego de Rodrigo à objetividade. Em um texto seguinte, chamado justamente "Objetividade", o escritor critica aquele que acredita apenas em sentimentos e desconfia "do dinheiro, das leis e das instituições". São valores, estes, que ele vê radicalmente conectados à arte. Fala desse hipotético antagonista que "torturava-se por não conseguir, muitas vezes, pôr-se à altura das próprias exigências". Livre de intenções e de elos secretos, Rodrigo se apega à serenidade proposta pelo mundo objetivo. E é assim que encara a arte: como uma experiência sensorial, que nos defronta como uma cabeça de gado, uma espada, ou uma parede.

Os pensamentos de Rodrigo Naves me fazem recordar de um amigo distante, a quem não vejo há pelo menos dez anos, que sempre se recusou a encontrar coisas escondidas dentro das coisas. "As coisas são como são", era uma das suas frases prediletas. Esse meu amigo só acreditava nas coisas que conseguia ver — naqueles objetos que impõem resistência ao observador, que se erguem diante dele de igual para igual, sem segredos, sem esconderijos. Um dia, caiu doente. Os intermináveis exames médicos nada revelavam. Os aparelhos não conseguiam "ver" aquilo de que meu amigo sofria — e ele acreditava piamente neles. "Não tenho nada. Apenas acho que sofro e essa é minha doença", resistia. Semanas depois, caminhávamos na orla do mar. De repente — era uma manhã linda e plácida — teve uma crise de choro. Alguma coisa que ele desconhecia, e cuja presença ele negava, de repente, transbordou de seu interior e não se deixou mais conter. Quando conseguiu se acalmar, me disse: "Acho que fiquei bom". Aquela dor sem nome, sem aparência, mas carregada de intenções secretas, era a origem de seu mal. No dia em que conseguiu encará-la, dela se livrou.

Não sei se a história de meu amigo ajuda a explicar, ou a turvar, as ideias de Rodrigo Naves. Talvez eu mesmo, seu antípoda, a elas resista também. E isso é o mais provável. São ideias tão distantes das minhas que tenho dificuldades de alcançá-las, e provavelmente se esfarelam pelo caminho. Nem por isso deixei de ler o livro de Rodrigo com grande ansiedade, sim, mas grande prazer. É muito bom experimentar um mundo, outro mundo, que se descola de nossas intenções, que desmente nosso próprio olhar. Ajuda a fortalecer nossas próprias ideias, na medida em que nos alimenta com argumentos que as desmentem. A Calma dos Dias é um livro que ajuda a pensar — e isso, apesar da turbulência inevitável, traz uma tranquilidade abrasadora.Dê sua opiniãoO que você achou da coluna de hoje? Deixe seu comentário e participe do debate.

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