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O que é a poesia? Como defini-la? De onde, afinal, ela vem? "O verso é um doido cantando sozinho./ Seu assunto é o caminho. E nada mais!/ O caminho que ele próprio inventa", responde Mário Quintana em um pequeno poema de Preparativos de Viagem (Alfaguara), livro organizado por Italo Moriconi. O poema se chama "O Verso". Em outro, "Música", Quintana tenta mais uma definição para o material de trabalho do artista. "O que mais me comove em música/ são essas notas soltas/ – pobres notas únicas –/ que do teclado arranca o afinador de pianos". Um afinador de pianos não tem um plano a seguir, ou uma partitura a executar. Luta com as notas tentando encaixá-las em seus lugares da escala musical, mas enquanto luta produz estranhos grunhidos. Gritos das notas, que não se deixam domar. Restos da música, que enfim são aquilo que dentro dela se guarda, aquela desordem original de onde os sons provêm.

Lírica, a poesia de Mario Quintana se debruça sobre as coisas do mundo para delas arrancar sons. Delas arrancar poesia. O poeta trabalha com materiais estranhos, que desconhece e que o desafiam. Só o poeta? Diante de um espelho, Quintana medita: "Esse estranho que mora no espelho/ Olha-me de um jeito/ De quem procura recordar quem sou...". O desconhecido e a ignorância não são obstáculos, mas armas. Eles alimentam o poeta – um homem qualquer, embora grave – e lhe servem de combustível para a escrita. Podemos ler em outro poema, "Extraterrena": "Nós colhíamos flores de hastes muito longas/ E cujos nomes nem ao menos conhecíamos.../ E nem sequer, também sabíamos os nossos nomes...". Nesse ambiente nublado, semelhante ao daquele que desembarca em outro planeta, as palavras se mexem e fazer sentido. Elas se alinham, se agarram, formam cadeias e poemas.

É tudo muito precário. Exige muita destreza de quem manipula. No "Haikai de Outono", ele se pergunta: "Uma borboleta amarela?/ Ou uma folha seca/ Que se desprendeu e não quis tombar?" A poesia é um bicho limítrofe, que rasteja entre dois mundos. Um pouco para lá, um pouco para cá, e para lá novamente. É um balanço, um ritmo, uma dança com as palavras. Em "Aeroporto", o poeta nos leva a ver que temos todos nomes deslocados, nomes falsos, e que só uns poucos de nós merecem "nomes verdadeiros". No mais, temos todos "um nome reconhecido apenas pelos anjos./ Mas eu reconhecerei o meu nome/ Como reconheço no espelho a minha imagem/ de cada dia".

O poeta trabalha na dobra: um conhecer que é, ao mesmo tempo, desconhecer. Uma descoberta que é, ao mesmo tempo, susto. Nessa fronteira, as coisas se misturam e se incluem. "Pois minha alegria inclui, também, minha tristeza", ele escreve. O saborear das palavras abrange, também, o conhecimento de sua futilidade. Está em "O Visitante Matinal": "Para que nomes? Era azul e voava..." O poema começa e acaba aqui. A coisa em si lhe basta, o nome parece um adorno exagerado.

Contudo, um poeta continua a escrever. Sempre. É sua sina e destino. Uma certeza secreta o guia: depois do Apocalipse, ficarão as palavras. Um dia, imagina ele, uma peste acabou com todos os homens do planeta. Restaram só as bibliotecas. "E nelas estava meticulosamente escrito/ o nome de todas as coisas!" O poeta arremeda, aqui, a sina de Arthur Bispo do Rosário, o artista que se sentia obrigado a colecionar uma peça de cada coisa existente para que elas sobrevivessem ao fim do mundo. Fixar para perdurar. Emoldurar (escrever) para não morrer. A palavra como um sinônimo de eternidade. No mais, sobra uma memória em farelos, como mais coisas trancadas do que abertas. "De minha vida, o que me lembro/ É uma/ Sucessão de janelas fechadas..." Interessa mais ainda o arremate: "Nalgum país de sonho..." A memória (sonho) feita de imprecisões. Sutilezas. Toda poesia é sutil, ou não é poesia. Existem sempre muitas janelas fechadas no caminho de um poeta; mas ele, em vez de se espantar, escreve.

A poesia, nas mãos de Quintana (1906-1994), era um instrumento para borrifar lirismo sobre a realidade. De coisas do mundo, comuns, rasteiras, ele fazia coisas elevadas. Da banalidade, desentranhou grandeza. É uma poesia flutuante, que fica a meio caminho entre o sonho e o real. Ele mesmo nos diz em "Poesia": "Às vezes, tudo se ilumina de uma intensa irrealidade/ E é como se agora este pobre, este único, este efêmero instante do mundo/ Estivesse pintado numa tela". O efêmero – como um pássaro enfim detido em uma frágil gaiola – enfim retido nos limites das palavras. Só assim conseguimos vê-lo. Vê-lo? Vislumbrá-lo. Senti-lo apenas, talvez só. Fica para o poeta a mesma pergunta que ele faz a Deus, em "A Rede": "Senhor,/ Que buscas tu pescar com a rede de estrelas?" Não há resposta. A poesia não inclui respostas e é isso – esse silêncio cósmico – que o poeta deve suportar para escrever.

Ali, o poeta reconhece o grande abismo entre as duas partes do mundo que, com a palavra, ele luta para unir. Um gato (em "O Gato") olha o poeta. Fita-o. "Fitamo-nos". Um abismo – exatamente ali onde a poesia se estende, imensa rede – se abre ele entre eles. Escreve Quintana: "Como duas criaturas incomunicáveis e solitárias/ Que fossem feitas cada uma por um Deus diferente". Pois é isso, a diferença, a matéria da poesia. Sem diferença, não há poesia. Sem entre rasgão no Um, não há lugar para a palavra e sua costura. Nas mãos de Mario Quintana, o lirismo é a linha com que ele cose o mundo e o conecta ao sublime.

Registra sua origem: "Venho do fundo das Eras,/ Quando o mundo mal nascia". Ao longo dos séculos, a persistir sempre na mesma costura delicada. "Sou tão antigo e tão novo/ Como a luz de cada dia", ele continua em "O Poeta". É o tempo que se rasga ali onde a poesia surge. Passado e futuro se atrelam no presente sutil da palavra poética. Por isso mesmo, já não importa saber que Quintana já está morto: sua voz continua a reverberar pelos espaços do mundo, indiferente ao ritmo dos relógios. No fundo, como nos diz no comovente "O Tio", dedicado a um tio que nunca teve: "É tudo sombra vã que agita o vento". A poesia, mostra Quintana, espalha sua manta de vento sobre a eternidade para lhe moldar um corpo amoroso.

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