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Ensaios

Aos Sábados, pela Manhã

Silviano Santiago. Rocco, 320 págs., R$ 36,50.

Atravesso de carro o sertão do Seridó, no Rio Grande do Norte, em direção a Caicó. É o ano do centenário de nascimento de Vinicius de Moraes e, mais uma vez, o poeta me arrasta para uma palestra sobre sua obra. O Seridó é um universo enigmático: vegetação improvável e seca, pedras e mais pedras, cactos em formas triunfantes. Vulcões extintos se esboçam, absurdos, na paisagem. A travessia é marcada pela presença onipresente da solidão. Guia-me um motorista silencioso, que — dirigindo em um estado que se assemelha à meditação —, sublinha, com suas poucas palavras, nosso abandono.

Ando, por sorte, agarrado aos livros. Dessa vez, em pleno sertão, leio Aos Sábados, pela Manhã (Rocco), reunião de ensaios publicados por Silviano Santiago no suplemento Sabático, de O Estado de S. Paulo. Pode parecer estranho, mas talvez não exista lugar melhor para ler os escritos de Silviano do que o "de-sertão" do Seridó. Ali estamos, eu e seus textos, em um ponto zero — e Silviano é um escritor que a ele gosta de retornar. Um homem sempre pronto para recomeçar. Crítico literário, professor universitário de prestígio, ficcionista premiado, poeta pouco conhecido. Um homem que não teme a aventura, que não se deixa prender por títulos, ou crachás. Que aprecia o novo. E não é isso, o desejo do novo, que define — que deveria definir — um intelectual?

Um ensaio, em particular, me chama a atenção: "Ler Lolita no Teerã". Trata da autobiografia da iraniana Azar Nafisi, livro que parte da hipótese (quase impensável) de uma leitura do romance de Vladimir Nabokov — que tem como tema a pedofilia heterossexual — em um Estado teocrático como o Irã. Comenta Silviano: "No contexto da revolução islâmica, a leitura do romance de Nabokov parecia-me um óbvio contrassenso. Perda de tempo". Azar Nafisi foi, durante muitos anos, professora da Universidade de Allameh Tabatabai. Com a revolução teocrática, afastou-se da universidade e organizou, em sua casa, um grupo de leitura, de que participavam sete ex-alunas. Sua autobiografia rememora essa experiência que é, no fim, uma experiência de deslocamento. Em um Estado religioso, a literatura só pode estar deslocada. Só pode ter a aparência de improcedente e demoníaca.

Pois também eu me sinto, de alguma forma, deslocado enquanto leio os ensaios de Silviano Santiago em pleno desolamento do sertão. A verdade é que esse sentimento combina com o próprio Silviano, um professor universitário de prestígio internacional, que nunca se ateve às fronteiras formais da academia. Que nunca teve medo de pular os muros protetores da sala de aula para se lançar na turbulência do real. Desde cedo se aventurou na imprensa — como temos mais uma vez a chance de constatar em "Aos Sábados, pela Manhã". Não posso deixar de pensar que eu mesmo, que venho do jornalismo literário, e não academia, compartilhei de alguma forma esta experiência ao reunir 100 de minhas colunas publicadas no Prosa em "Sábados Inquietos" (Leya, 2013). Aos sábados, durante um longo tempo, e mesmo vindos de mundos distintos, estivemos, eu e Silviano, de alguma forma, juntos.

Seu espírito de desbravador se evidencia na pluralidade de temas. Proust, Jorge Amado, Camilo Pessanha, Jean Genet, Júlio Bressane, Hegel, D. H. Lawrence são alguns de seus personagens. Que ele trabalha com surpresa, envolvendo-os no frescor da precoce descoberta, como se os lesse pela primeira vez. Não somos amigos íntimos — só estive em sua casa para uma ou duas entrevistas formais —, mas temos afinidades que, acentuadas pelas imensas diferenças, nos aproximam. Algumas vezes, ao acaso, nos encontramos durante caminhadas no calçadão de Copacabana, ou em eventos literários. Silviano — num gesto generoso que só confirma sua mestria — já frequentou, discretamente, o auditório de algumas de minhas palestras. Não é só um homem generoso, devo ser justo: é um intelectual que se interessa pelas diferenças e pela surpresa. Um intelectual que rompe fronteiras, não para afirmar seu saber, mas para se deixar contaminar pelo susto.

Certa vez assisti, no auditório do Itaú Cultural, em São Paulo, a uma mesa de debates que Silviano dividia com Flora Süssekind. São amigos muito próximos. Nunca abdicando da coragem intelectual, Flora fez duras críticas ao jornalismo literário contemporâneo. Ao fim do debate, Silviano me procurou. "Temi, todo o tempo, que a Flora o citasse diretamente", desabafou. Não me magoaria. Pelo contrário. Tornar-se objeto da crítica impiedosa de Flora — uma pensadora intransigente, que jamais negocia suas opiniões — seria não um demérito, mas um luxo. Criticar é pensar. Mesmo assim, a doçura de Silviano, que não tem o mau hábito de separar o pensamento do humano, me comoveu. "Faria parte do jogo", lembro que lhe disse.

Silviano é um intelectual desarmado, que está sempre pronto para se surpreender. Aprecia os iconoclastas — como o crítico norte-americano Jonathan Crary, o teórico da observação — e, mesmo sem jamais perder a elegância, diz (irmão mais velho de Flora) claramente tudo o que pensa. Com todas as letras e, sobretudo, com uma deliciosa ironia. Pena — aqui sou obrigado a constatar — que quase nunca transporte essa ironia para seus ensaios. Creio (mais isso é só uma opinião) que deveria se permitir o gozo do riso discreto. Que deveria (é só um palpite) transportar seu estilo forte para seus escritos críticos. Sou obrigado ainda a pensar: será que algo de sua origem acadêmica ainda o entrava?

A verdade é que Silviano Santiago se liberta, por completo, em suas ficções. E é um dos grandes ficcionistas brasileiros, embora em geral reduza-se sua imagem à do "professor". Ficcionistas também são críticos: são os primeiros críticos de si mesmos. Silviano sabe disso e seus ensaios nos fornecem mais uma prova. Espero que a releitura de seus escritos jornalísticos conduza os leitores à sua potente ficção. Silviano é um escritor, e um escritor não se embrulha em uma marca. Está sempre sozinho e assim se sente melhor — como eu também estive, agarrado a seu livro, na travessia do Seridó.

Silviano Santiago é um dos grandes ficcionistas brasileiros, embora em geral reduza-se sua imagem à do "professor".

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