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Coletânea

Entre as Quatro Linhas – Contos sobre Futebol

Vários autores. Organização de Luiz Ruffato. Editora DSOP, 188 págs., R$ 29,90.

É densa e cheia de conflitos a relação do brasileiro com o futebol. Quando vencemos, a glória. Quando perdemos, a vergonha. Não existe meio termo e essa é a crueldade. Agora que a Copa do Mundo se aproxima, a ambivalência se evidencia, mais uma vez, nos preparativos da festa. Paixão, mas também ódio. Adesão, mas também repulsa. Apesar disso, ou por isso, o futebol, esse mito que nunca se completa, está, mais do que nunca, arraigado ao espírito do brasileiro. Dessa paixão difícil, quinze escritores arrancam agora quinze relatos breves. Eles estão reunidos em Entre as Quatro Linhas — Contos sobre Futebol, volume organizado para a editora DSOP por Luiz Ruffato.

O futebol devassa e engrandece o humano porque reproduz — na moldura implacável das quatro linhas — um espelho de suas limitações. Mas também de seus sonhos de vitória. É o que acontece com Robertson, o craque decadente de "Uma questão moral", conto de Cristovão Tezza narrado na perspectiva do juiz João Batista. Atuando em um time da divisão inferior, ele estanca na grande área adversária à espera da sorte. No último minuto, consegue (quase sem saber como) fazer um gol salvador. Robertson é apenas um dos elementos da mente do juiz que, enquanto apita o jogo, divide seus pensamentos entre o que se passa em campo e os impasses de sua vida afetiva.

O futebol invade o que temos de mais íntimo. Transpõe os limites dos esportes para se instalar em nosso mundo interior. Na mente do juiz, futebol e vida amorosa se mesclam como que feitos da mesma matéria. O brasileiro — e não só ele — pratica o futebol com um espírito passional. Ao ler o livro organizado por Ruffato, recordo minhas experiências de jovem torcedor apaixonado, carregando uma imensa bandeira tricolor, perdido nas arquibancadas do Maracanã. Perdido, mas irmanado — igualado — pela fúria da torcida. Ali o lúdico e o pessoal se misturaram de modo inseparável. Ali aprendi, ultrapassando minhas próprias fronteiras, a me entregar ao rol atordoante das paixões.

Durante longos anos, salvo honrosas exceções, a literatura brasileira não soube dar conta do futebol. Fugiu dele. "‘Entre as quatro linhas’ é a prova de que o cenário de rejeição ao futebol como tema, principal ou secundário de boas histórias de ficção está mudando", diz Ruffato em sua introdução. E por que essa rejeição? Talvez a palavra mais correta seja medo. É muito difícil dar conta de um esporte que, ao se transformar em mito, revolve os fundamentos do indivíduo. Quando se trata do futebol, não é só dele que se trata, mas da difícil exaltação que ele arrasta consigo.

Um exemplo aparece em "O dono da bola", conto de Eliane Brum, relato no qual o amor pelo futebol se transforma em matéria de manipulação e de morte. Sob a desculpa de organizar uma partida na selva, um homem deseja, na verdade, derrubar um imenso castanhal. Raimundo, o protagonista, "se lembra de uma vez ter perguntado ao pai se verde era a cor do mundo inteiro". O pai foi duro: "É melhor que a gente não conheça". A descoberta do futebol o conduz, porém, por caminhos inesperados. Guardada em um velho baú, uma bola se torna um veículo de paixão, mas também de estrago. Raimunda, sua mulher, tem um vínculo ambíguo com certo Regatão, Raimundo também. "Ela gostava e não gostava do Regatão. Tinha medo dos olhos que o Raimundo de fora deitava nela e ao mesmo tempo um alvoroço que era quase bom". Regatão é o mundo externo, desprovido do verde, que é substituído pelo sangue. É Regatão quem traz para a mata certo Valdir, por quem Raimunda se apaixona. A própria mulher se torna instrumento da invasão. Valdir promete o futebol — mas em seu lugar traz o aniquilamento.

O futebol é um esporte que não aceita a indiferença — como se expressa em "Reverso do jogo", conto de Carola Saavedra. É um jogo que confere identidade: "Por um instante, em cada rosto, surgia o nosso próprio rosto". A surpresa dos desconhecidos que se encaram e se reconhecem é só um dos efeitos que o futebol consegue produzir. Uma festa que não aconteceu se passa um tanto à margem do narrador distraído, mas ainda assim envolvido. Só o futebol é capaz de produzir essa sensação de compartilhamento. "A realidade é sempre algo irreal. A realidade é sempre algo desconhecido". O reverso do jogo é a dor que ele pode produzir. Dor de uma contínua espera: "De nada adiantava esperar, que era isso, que seria sempre assim, aquela expectativa, aquele instante repetindo-se indefinidamente".

Sentimentos árduos que observamos em "Magarefe", conto de Ronaldo Correa de Brito, que conta a história de um time de futebol composto por açougueiros. De um lado, os jogadores "barulhentos pela calçada, (...), sem camisa e sem banho, o suor escorrendo do peito, costas e axilas, os açougueiros exalavam um odor forte como o do amoníaco, (...), homens brutos, magarefes acostumados ao manuseio de carnes". De outro, os rebanhos bovinos subindo tristes, mas resignados, para o matadouro. "Urubus espreitavam aparas de couro e vísceras jogadas nos arredores". Aqui o futebol expõe seu lado bruto e algo sanguinolento, expõe-se como uma paixão radical. Ao trocar o ofício de açougueiro pelo de jogador, o personagem descobre, enfim, algo que os iguala. Um grande vazio os sustenta. "Se perguntassem o que fantasiava ao fechar os olhos, responderia: nada".

É o que se vê em "O filho negro de deus", conto de Rogério Pereira. Relato de um pai que acompanha o filho pequeno em uma visita a um velho ídolo esportivo. A lembrança remota não combina com a história do jogador. "Quando o vi, imaginei que não daria muito certo. Era apenas um esboço de jogador". Agora que visita o velho W., entende como o futebol é capaz de tirar vantagem da imperfeição. O reencontro traz o passado de volta. "O mesmo corpo magricelo, agora encurvado, incômodo na cadeira de rodas". O pai obriga o filho a sorrir. "O menino tem pouco mais de 5 anos e parece assustado. W. não se mexe". Ele tem seu primeiro contato, precoce e dolorido, com a fragilidade da paixão. Que, nem por isso, menos paixão é.

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