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Não devo ser exceção. Quando vejo governantes, em especial burocratas da área econômica, citando estatísticas, louvando suas realizações, me pergunto: de que país estão falando? Nos relatos oficiais, os números são otimistas. Crescimento, reformas, realizações. Sendo distraído, olho pela janela e levo um choque. Habito dois países: um tem cheiro de propaganda, outro está a minha frente. Um deles é construído pelas estatísticas oficiais, outro é o mundo real, que teima em existir, com seus defeitos e encrencas, com suas inviabilidades.

O livro Viagem ao crepúsculo, do jornalista pernambucano Samarone Lima – Editora Casa das Musas, 232 páginas – me fez reviver essa agonia, ainda que o livro fale de Cuba e não do Brasil. Ocorre que Samarone foi à Ilha com o propósito de conhecer o país real que lá se encontra, desprezando os grandes discursos, seja dos governantes, seja dos intelectuais encantados com o charme da revolução cubana.

"O brasileiro – diz Samarone – sabe muito pouco ou quase nada sobre a Ilha, Transitamos entre os textos idealizados de Frei Beto e o lugar comum da mídia." Entre as idealizações romântico-teológicas e as críticas não raro desonestas, Samarone escolhe mergulhar na sociedade cubana, tornando-se um turista inusitado: não quer comprar nada, nem conhecer monumentos ou andar em ônibus refrigerados, nem ler discursos oficiais. Mochileiro convicto, caminha por Cuba obstinadamente em busca de seres humanos e de depoimentos sinceros e espontâneos.

Seu livro é um delicioso relato de viagem. Vivendo como clandestino, opta pela Cuba real. Mostra-se um excelente ouvinte. Ouve e registra. Não contesta, não orienta, não polemiza. Quer saber como vivem os cubanos e se hospeda em suas casas. Comete a primeira infração: os cubanos são proibidos de hospedar estrangeiros. No entanto, como ocorre com outras proibições, eles burlam as regras. Precisam juntar seus trocados e assumem os riscos.

A primeira lição: existem duas moedas. Pesos cubanos e convertibles. Como não sabia disso, Samarone paga 24 vezes mais caro por um livro popular impresso em papel jornal. A moça da livraria, na moita, embolsa a diferença. Seria a segunda lição: o turista deve ser explorado. E não se trata de chauvinismo ou maldade: é a luta, como dizem os cubanos.

O pão é um mesmo pão, dois para cada cubano. É preciso comparecer com a libreta, mas, com uma gorjeta, se consegue uma quantidade maior de pães. O leite é raridade. Arroz, idem. O que alimenta um dinâmico mercado negro. Celeste, uma senhora cubana que sozinha renderia um romance, atende o telefone, resmunga algo e diz: preciso sair. Quando volta, tráz açúcar, arroz, carne de galinha. A vizinhança forma fila em sua porta. Samarone não sabe como funciona o es­­quema, mas descobre que esses ali­­mentos foram originalmente destinados a hospitais, refeitórios, colégios.

Os médicos cubanos – salário mensal: 40 dólares – espalham-se pela Venezuela, África, América Central. São os médicos "internacionalistas". Os estudantes ficam nos hospitais. Uma jovem com quem Samarone conversou tem vontade de dar uma surra em Michael Moore, que fez um filme criticando a medicina norte-americana e endeusando a cubana. Ela gostaria de vê-lo como morador da Ilha.

Sendo pouco o espaço de que disponho, devo ser direto: leiam esse livro. Que não é mero registro frio – ainda que ouvir e registrar seja sua grande arte. É também um depoimento comovente a respeito das grandes esperanças destruídas ao longo dos 50 anos de revolução que Cuba comemora. E não há desculpas: não são limitações da Ilha e de seu povo, nem cabe culpar o "bloqueio econômico" imposto criminosamente pelos EUA. Trata-se de uma visão arcaica da sociedade, da economia, das relações entre as pessoas, da democracia, do vetusto cultivo de homens-providenciais, os heróis que salvam um povo – no caso, os irmãos Castro.

O livro se lê com prazer e alegria – aquela que a descoberta do real nos proporciona – mas ao final nos resta um travo triste na alma. Só a figura de Celeste nos impede o desânimo completo.

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