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Ao contrário do que imaginam os realistas, as fantasias é que moldam o destino humano. Os gregos, por exemplo, foram os primeiros que se atreveram a imaginar que eram gregos – e deu certo. Até hoje nos alimentamos desse desabusado disparate helênico e, sabendo disso ou não, nos apoiamos nele para inventar artes, sociedades, instituições, legislações, pensamentos, ciência e, infelizmente, guerras.

Aliás, nisso de guerras os gregos eram muito impulsivos e iam para as batalhas com o coração tão aberto quanto o daquele personagem do notável humorista português Raul Solnado, recentemente falecido. Desempregado, o sujeito vê na guerra um modo de ganhar a vida matando gente sem ser preso. E vai à procura da porta da guerra na qual bate e pergunta:

– É aqui que fica a guerra de 1908?

Daí em diante se desenrola um diálogo aloprado que só um gênio poderia inventar.

Mas voltemos às fantasias, que são outra coisa, embora sejam o mesmo.

Quando adolescente, conheci em Blumenau um tipo que era um humilde funcionário da prefeitura. Passou a vida numa saleta escura, remexendo papéis inúteis. Acontece que se imaginava rico. Senão de fato, de direito. Vestia-se com muito esmero, embora com um único terno, tinha duas boas camisas e uma bela gravata. Almoçava em restaurantes baratos que serviam pratos feitos e ia palitar os dentes na porta do restaurante mais chique da cidade, a Gruta Azul, onde gastava horas conversando com figurões endinheirados e chefetes políticos locais. Exercitava conversas de rico, dava opiniões dignas de poderosos, falava como um proprietário do mundo. Não tinha onde cair morto, o que era irrelevante, pois, ao se recolher ao quarto de pensão onde morava, trazia na cabeça as mais eufóricas fantasias de um endinheirado. Acabara de conversar com o prefeito, com o dono das fábricas Hering, Artex ou Porcelanas Schmidt. Além do mais, cumprimentava e se despedia gastando a meia dúzia de palavras que conhecia da língua alemã. Por isto era rico. E feliz.

Por aí se vê que o importante não é exatamente o que o sujeito é, mas o que ele pensa ser. Dona Nezinha, por exemplo, moradora aqui da Vila, imagina que tem cerca de 22 anos. Ou melhor, 21. Há mais de cinco décadas. Sai ano, entra ano, ela segue com o mesmo sorriso de botox, fixo e imutável como o de uma estátua.

Não é essa a única fantasia de dona Nezinha. Também se imagina rica, embora ricos tenham sido seus avós, donos de fazendas e palacetes. Com os azares da sorte, a família perdeu tudo e se espalhou por atividades diversas, sobrevivendo como era possível. Dona Nezinha acabou aqui na Vila, onde mora numa casinha simples junto com seu cão doberman chamado Astolfo. Mas vive de rendas: aluga um apartamento, herança que lhe deixaram em Caiobá. Ora, quem vive de renda não pode ser pobre, convenhamos.

É feliz? É rica de verdade? Que importa? Tal como o sujeito que palitava os dentes na calçada do restaurante mais fino da cidade, ela conhece toda a alta sociedade, tratando com intimidade a juízes, desembargadores e políticos, todos seus colegas de infância. Lá uma vez ou outra, um carrão com chofer uniformizado, enviado por uma amiga dos tempos de escola, vem buscá-la aqui na Vila.

– Reunião da turma do Sion, explica ela aos curiosos que se juntam para ver o fenômeno de quatro rodas e brilho impecável.

Pois dia desses, quando ela descia do carro, um novato aqui da Vila, chamado Bill Paulis­tinha, fez uma piada sobre po­­bre metido a besta. Dona Ne­­zinha, atônita e chocada, en­­fiou o pé numa poça d’água e enlameou o vestido que reserva para ir às reuniões da turma do Sion.

Bill só parou de rir ao receber um brutal pé de ouvido que o cego Tião, o filósofo e guardião da Vila, lhe acertou.

– Deixa de ser besta, sujeito, disse o cego. Dona Nezinha é a única rica que temos aqui na Vila. É a nossa classe alta, entendeu? Toda sociedade tem uma, nós temos também. É bom o senhor aprender.

E o cego Tião deu o braço à dona Nezinha, conduzindo-a até a porta de casa, como se deve fazer com uma grande dama, além do mais, rica e jovem.

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