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Dia destes, ouvindo uma transmissão de futebol no rádio, me diverti com a aflição do locutor, francamente favorável a um dos times – ele estava irritado com a cera que o adversário fazia para segurar o empate. O locutor esbravejava, exigia do juiz uma atitude, condenava a demora, o anti-jogo, e por aí vai. Eu tomava um quieto café de final de tarde e segui escutando aquela arenga.

Volta e meia o locutor se exaltava:

– Olha o goleiro! Não repõe a bola! É uma barbaridade!

Sendo o futebol a tal da caixinha de surpresas, quando eu passava manteiga no segundo pedaço de pão, o time do locutor fez um gol, mudando o placar. O locutor, comemorou aos berros, fazendo com que meu rádio desse saltos sobre a mesa da cozinha. Agora seu time estava vencendo.

Bom, não demorou, o time do locutor retardou a colocação da bola em jogo por conta de um lateral. E ele, triunfante:

– É isso aí! Agora é nossa vez!

E toda a equipe da rádio comemorou aquilo que passaram a chamar de esperteza, de jogo de cintura, de "administração do resultado".

Bom. O Brasil é um país não apenas de ponta cabeça, como dizia Tom Jobim, mas é também um país que, por diversas circunstâncias históricas e sociais, não exercita o que se chama de pensar. Pensar é de fato doloroso, custa esforço, desprendimento das circunstâncias imediatas da vida, projeção da inteligência e da imaginação no futuro, acúmulo de dados vindos do passado, para ficarmos apenas no mínimo necessário.

Fascinado pelo imediatismo, o locutor agia em função dos estímulos momentâneos, o jogo. Não lhe ocorria especular sobre as condições que tornam um jogo possível – não só a bola, as traves, as chuteiras, mas as regras comuns a todos. O lamentável é que esta cegueira intelectual não está presente apenas no torcedor de futebol, mas se encontra em todas as camadas da população e condiciona o que podemos chamar de oportunismo ético. Ou realismo cínico.

Desliguei o rádio, meu café chegava ao fim de modo melancólico.

Lembrei então que o locutor tinha não apenas um grande número de iguais, mas também um número ilustre de iguais. No caso, o presidente Lula, que vive citando o futebol como o universo de onde extrai seus conceitos (Conceitos? Que Kant e os leitores me perdoem.)

Quando esteve em Madrid, Lula fez uma declaração surpreendente, ao menos para mim, que gasto um tempinho diário com isso de pensar. Disse ele: "Você não governa com principismos. Principismo você faz no partido quando pensa que não vai ganhar as eleições. Quando vira governo, governa em função da realidade que tem".

É uma versão vulgar da idéia de que existem razões de estado que se impõem aos governantes, caricatura tupiniquim das relações entre meios e fins – uma espécie de Maquiavel de chuteiras. Ela exige, em nome do realismo político, que os governantes possam mudar de convicções e atitudes com relação àquilo que pregavam antes de chegar ao poder.

Se estes dois, o tal locutor e o presidente Lula, conseguissem pensar e tivessem o hábito de ler e estudar, lembrariam que Kant estabeleceu uma condição básica para o imperativo ético: a universalidade. Para que algo possa ser tido como ético deve ser passível de generalização para todos os seres humanos. Por que a mentira é condenável? Porque, se todos mentirem, qualquer sociedade humana se torna inviável. No futebol, as botinadas indiscriminadas ou as malandragens impunes destruiriam o jogo. Trata-se, poderia objetar o filósofo Lula, de um "principismo". O locutor diria que ficaria impedido de torcer. Enfim, os dois lutariam para que prevalecesse a ética brucutu: ao nosso time tudo, ao adversário o cartão vermelho. Enfim, como não pensam, buscam seus modelos no futebol.

Eis como, terminado o meu café vespertino, descubro mais uma vez que o Brasil é um país desossado intelectual e eticamente. Um país que não pensa. Por isso, qualquer um – seja presidente ou profissional da comunicação – pode dizer qualquer besteira impunemente.

Como talvez observasse Kant, que era um "principista" de quatro costados: "neste caso vocês vão ter que agüentar a guerra de todos contra todos".

É onde estamos, não é mesmo?

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