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Desenvolvia a aula com a aflição avassaladora da qual só sujeitos grandalhões são capazes.

A turma de filosofia era composta por uns vinte e poucos alunos ou, no ato falho cometido por uma aluna: "éramos umas oito moças, uns doze rapazes e mais uns nove seminaristas".

O professor era padre João Zelesny. Figura inesquecível. Grandalhão. Sempre com a mesma batida negra e surrada, lavada com pouca frequência. Suava muito. Trazia um lenço amarrotado nas mãos com o qual enxugava o rosto, assoava o nariz e apagava o quadro negro na falta de um apagador nas redondezas. Sólido exemplar iugoslavo que enfiara cabeça adentro a filosofia de Tomás de Aquino, defendida contra tudo e contra todos.

Entrava na sala dando um bom dia feroz e se plantava no alto do estrado. De onde lascava, fazendo o sinal da cruz:

– Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo!

E todos rezavam o Pai Nosso.

Era o início do curso de Ontologia e eu havia faltado às duas primeiras semanas de aula. Não conhecia o professor e fui o único a não ficar de pé de imediato. Levantei aos poucos, incrédulo e incréu, sem entender aquela oração num curso de filosofia.

Terminada a oração, fazia a chamada e despejava um esquema tomista no quadro. Desenvolvia a aula com a aflição avassaladora da qual só sujeitos grandalhões são capazes.

Era respeitado, mesmo pelos que discordavam dele. Defendia com competência e honestidade suas crenças. Passamos por um ano de filosofia aristotélico-tomista.

Certo dia João Zelesny surgiu na classe com uma novidade. Era uma publicação mimeografada (aos jovens informatizados de hoje, explico: cópias produzidas num aparelho pré-diluviano chamado mimeógrafo, precursor das atuais impressoras). Não me lembro do autor; os textos levavam o título de "O Alcance Metafísico dos Sentidos".

Eram textos ótimos. Reflexões fenomenológicas sobre os cinco sentidos que ao final eram conciliadas com o tomismo, é claro.

Por exemplo, o olhar. Vemos os outros, mas também nos mostramos ao olhar. Percebemos se o outro nos entende ou respeita, mas também se o outro lê em nossos olhos o que sentimos. A audição: ouvimos o outro e esse é o sentido mais generoso. Damos ao outro o direito de falar, respeitamos quem ele é. Esse capítulo do ouvir foi o que mais me impressionou, pois muitos gostam de falar e poucos de ouvir. O ouvir é generoso e paciente – ao contrário do falar que costuma ser ególatra e alheio ao que o outro sente ou pensa.

Se não estou inventando, era isso. As reflexões fechavam com a fórmula:

– Os sentidos são uma abertura para o outro!

O outro e a abertura estavam na moda.

– A Filosofia é uma abertura para o mundo!

Certo dia padre João entrou na sala e no quadro negro havia um desenho esquemático: um trilho entrando numa ogiva. Abaixo, em letras garrafais:

– O túnel é uma abertura para o trem!

Esbravejou de todos os modos que sua condição religiosa permitia e saiu da sala exigindo que o culpado se apresentasse.

Não creio que tenha se apresentado. Sei que o culpado se tornou monge beneditino conhecido por sua atuação pastoral. Além da prática política, é claro.

Mas não digo seu nome. Delação é um crime muito feio, já ensinava São Tomás de Aquino.

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