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Em crônica anterior, eu dizia que os doidos eram, há algumas décadas, criaturas amadas e indispensáveis à cidade. Ao menos às cidades civilizadas. Viviam no mesmo espaço urbano dos habitantes chamados normais e eram objeto de simpatia.

Em Florianópolis – e isso eu não vi, mas minha mãe me contou – havia uma senhora doida que se embrulhava em muitos panos e vestidos e chapéus. Chamada Barca Quatro por razões desconhecidas e que talvez seja melhor ignorar. Sempre trazia na mão direita uma vara longa, sua forma de impor respeito.

Andava pela cidade, pedia aqui, dormia ali, conversava com as senhoras nas janelas – as senhoras dessa época passavam horas à janela – dava explicações complexas sobre as direções dos ventos e o tempo que faria nos dias seguintes. Habitualmente calma, cordata, cumprimentava a todos com um resmungo seco – dava bons dias mas não queria que se metessem com sua vida.

Mas todo doido tem seu ponto fraco. Se algum moleque gritasse seu apelido, a vara chicoteava o ar e ela saía à caça do atrevido. Colocou a correr metade da população da Ilha do Desterro.

Certo dia, contava minha mãe, lá vinha Barca Quatro passando na calçada em frente à Catedral, quando descia as escadarias o meu tio Otávio, um moço calado, sorumbático, educado, incapaz de abusar de quem quer que fosse. Saía da igreja e se dirigia para casa. Quando desceu o último degrau e Barca Quatro passava a sua frente, lá do outro lado da rua um moleque gritou:

– Barca Quatro!

Ela vibrou a vara no ar e acertou meu tio com uma guascada que abriu um corte fundo em seu rosto. A história virou lenda familiar, menos pela violência do golpe – não intencional – e mais pelo temperamento tímido de meu tio, de quem todos riam. Logo com o Otávio, diziam.

Já o Adolfo era um doido muito ativo, agitado, pequenininho. Vestia sempre um terno velho e era íntimo dos freqüentadores do Ponto Chic, na Rua Felipe Schmidt, onde vinham tomar cafezinho variados desocupados de Florianópolis: funcionários públicos, vereadores, deputados, estudantes, senadores, e, não raro, o governador.

Adolfo era uma pose só. Sabia que era importante e só confabulava com os importantes da cidade. Ouvia as conversas, tirava conclusões, emitia opiniões desastradas fosse sobre o governador ali presente ou sobre o presidente da República que, para ele, sempre foi e sempre seria Getúlio Vargas – o suicídio não passava de uma trapaça de inimigos, que o exilaram sem um tostão no bolso em lugar desconhecido, de onde ele seguia, no entanto, governando o país.

Em Curitiba, conheci também vários desses doidos.

Um deles era o Esmaga. Mas não conto suas peripécias, só registro, pois é um personagem que pertence a dois outros escritores: a Jamil Snege, que o colocou na capa de um livro precioso, Ficção Onívora, e a Cláudio Lacerda, que nos prometeu e jamais cumpriu escrever a biografia de um dos doidos mais astutos e gaiatos que conheci. Tal como Adolfo, conhecia a todos os políticos paranaenses e freqüentava a Boca Maldita como um mestre de cerimônias. Era capaz de nos enxergar a duas quadras de distância – vinha correndo pedir um dinheiro para o cafezinho. Quando via minha mulher – grávida de nosso filho João Marcelo – ficava agitadíssimo e pedia licença para acariciar sua barriga. Dizia: "Você está uma grávida muito linda". Sedutor e respeitoso, tanto quanto possível.

Tal como Adolfo, Esmaga jamais usou de seu prestígio junto a políticos para conseguir favores que fossem além de um trocado para o café. É verdade que o Cláudio Lacerda lhe arranjou recursos para uma operação delicada, mas sobre este episódio hilariante ele mesmo terá que escrever algum dia. Mas foi favor de amigo, não de político. Como se vê, os doidos de antigamente tinham amigos e, além de serem divertidos e amáveis, eram muito éticos.

E havia, além de outros que não cabem neste espaço, um doido admirável que já virou livro e peça de teatro: Gilda. Homem e mulher, macho e fêmea, maquiado de forma extravagante, usando vestidos longos reinventados a cada dia. Embriagado, dançava na Rua XV empunhando uma garrafa de cachaça. Um dia foi morto numa briga, numa casa abandonada, ali na Jaime Reis, por mendigos que jamais se destacaram como doidos. Os doidos de verdade, pensávamos na época, eram inofensivos.

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