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Uma adaptação da ópera de Shostakovich: o primeiro ato tem a cama como centro | Divulgação
Uma adaptação da ópera de Shostakovich: o primeiro ato tem a cama como centro| Foto: Divulgação

Engraçado como se cobra de certas histórias consagradas uma fidelidade que não precisa existir. Diz-se de certos filmes, por exemplo, que "não foram fiéis ao livro" no qual se inspiram.

VÍDEO: Assista a uma adaptação da ópera Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk

Fosse assim, não existiria uma Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk, romance de Nikolai Leskov (de 1865). O russo tomou o nome da vilã de Shakespeare de forma a deixar bem clara sua fonte, mas criou um enredo cujas motivações são totalmente outras, num contexto bem diferente. Em comum, duas mulheres que, diante de uma oportunidade de melhorar de vida (uma movida pelo poder, a outra, pela paixão), não hesitam em matar. E veem-se perseguidas pelas consequências, sociais e psicológicas.

Ao agregar ao nome da peça escocesa o da cidade do extremo oeste da Rússia, Leskov como que avisa aos amantes do bardo inglês: essa é a minha obra. Ele se permite, por exemplo, assombrar sua Lady com as aparições destinadas ao marido na peça. Pobre Caterina.

Por sua vez, o compositor russo Dmitri Shostakovich tomou o romance e o transformou em ópera – um gênero que os crentes da "teoria da fidelidade" devem evitar a todo custo. Para comportar a trama às necessidades líricas de sopranos e barítonos, os libretos resultantes da adaptação pintam e bordam com a história original.

E acabam acrescentando grande riqueza interpretativa. Quem imaginaria, ao ler o romance de Leskov, que Caterina, ao ver-se seduzida por Sergei, senta-se e pinta as unhas dos pés com um sorriso sonhador?

A dupla Shostakovich/Alexander Preis imaginou e colocou no palco. Em sua obra, o tema do tédio enfrentado por Caterina é escancarado em insatisfação sexual. Sob a direção de Alexander Anissimov, disponível na íntegra no Youtube (veja na indicação de vídeo ao lado), o humor invade a cena em diversos momentos.

Da carniceria às risadas, as pérolas literárias estão aí para serem não só lidas, mas usadas e abusadas.

Que não seja por falta de autorização: segue a descrição do teórico Patrice Pavis para o verbete "adaptação", em seu Dicionário de Teatro (1980): "Todas as manobras textuais imagináveis são permitidas: cortes, reorganização da narrativa, ‘abrandamentos’ estilísticos, redução do número de personagens ou dos lugares, concentração dramática em alguns momentos fortes, acréscimos e textos externos, montagem e colagem de elementos alheios, modificação da conclusão, modificação da fábula em função do discurso da encenação" (Editora Perspectiva, 1999).

Próximas paradas: Lady Macbeth da Sibéria, do cineasta Andrzej Wajda (1962) e o conto de Turgenev, Hamlet do Distrito de Shchigrovsky (1859). Mais alguma sugestão?

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