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Sessão matinal em cinema de São Paulo exibiu o filme O Pequeno Tenente, de Xavier Beauvois | Divulgação
Sessão matinal em cinema de São Paulo exibiu o filme O Pequeno Tenente, de Xavier Beauvois| Foto: Divulgação

A única maneira de lidar com certas coisas é fingir que elas não existem, convencer a si mesmo de que não aconteceram. Foi mais ou menos isso que Francis Ford Coppola, o diretor de cinema, disse quando perguntaram para ele como havia conseguido superar a morte repentina do filho (o rapaz morreu em 1986, aos 23 anos, em um acidente de barco).

Ele disse que não superou e talvez uma perda assim não seja superável, então o pai segue vivendo e fingindo que a morte não aconteceu. Uma vez ou outra, o fato vem à tona e incomoda, mas, na maior parte do tempo, dá para ignorá-lo. Está aí uma utilidade do trabalho, por mais modorrento que seja: ocupar a cabeça.

Pensei na fala do Coppola porque estou entrevistando sobreviventes do 11 de Setembro para uma série que deve sair na Gazeta do Povo a partir da semana que vem e vejo como é difícil para alguns deles lembrar o ocorrido. As pessoas podem ter maneiras diferentes de lidar com um evento traumático, mas, no caso de uma situação-limite, envolvendo cenas explícitas de morte, destruição e caos, acredito que a maioria sofre muito e até os que parecem superar a situação são assombrados de alguma forma.

Para certas pessoas, há feridas que não cicatrizam (mas essa metáfora é batida). Ou há tristezas que nunca deixam de incomodar, traumas que não são superados, passados que nunca passam. Ninguém envelhece ileso, a não ser que viva fugindo e, mesmo em fuga, arrisca a vida agarrá-lo pelo colarinho e mostrar quem é que manda.

Pouco tempo atrás, em São Paulo, fui a uma sessão de cinema em um domingo de manhã. Era para ver um filme – aliás, bem bom, chamado O Pequeno Tenente – que seria apresentado como parte de evento organizado por uma escola de francês. (O mundo seria um lugar melhor se houvesse mais sessões de cinema nas manhãs de domingo.)

Antes da exibição, havia um café com croissant e pão de chocolate. Foi no Reserva Cultural, na Avenida Paulista, e o lugar estava muito cheio. Arrisco dizer que dois terços do público tinham mais de 60 anos e estavam todos tranquilos, conversando na fila e esperando a hora de entrar. Eu ia escrever que era como se tivessem ido à missa, mas a metáfora do cinema como igreja também é manjada. Foi, enfim, uma espécie de comunhão entre todos que estavam lá. "Na hipótese de não fazer nada ou ir ao cinema, por que não ir?", pareciam dizer.

Agora, esta amarração pode não fazer sentido para você, mas faz para mim: os senhores e senhoras que foram assistir ao filme francês me mostraram, na sua disposição matinal invejável, que é possível viver tempo suficiente para passar por experiências ruins, sofrer perdas e assim mesmo chegar à velhice com um gosto pelas coisas simples que fazem a vida boa.

Espero ter essa sorte.

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