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É incrível o que a mente pode fazer enquanto os olhos estão fechados. É baseado nessa capacidade e na ideia de que o público é quem termina de realizar um espetáculo que o grupo argentino Ojcuro criou La Isla Desierta, montagem do texto do consagrado Roberto Arlt, em que atores e audiência estão às cegas, há 12 anos em cartaz.

Do lado de fora, curiosíssimo sobre aquilo a que será submetido, o espectador tenta descobrir qual a formatação do cenário, se os atores estarão a uma distância segura o suficiente ou se sentirá o roçar de seus dedos; se haverá cadeiras, se saberá onde pisar. Não adianta, ninguém revela nada e não serei eu a estragar a surpresa. Digo isso porque Buenos Aires é a nova Gramado, logo ali, e recomendo o programa como uma chance de ver um pouco da vida cultural alternativa da capital argentina.

A peça é apresentada no Centro Cultural Konex, na Rua Sarmiento, onde também são realizados shows e há espreguiçadeiras para o público descansar debaixo de uma escada estilosa de metal.

Mas, voltando à peça. Após ser conduzido, já no escuro, por uma fila em que cada um agarra apreensivamente o ombro do sujeito da frente, o espectador é conduzido a uma cadeira, senta-se ali e apura os sentidos. Está ligada a máquina de imaginar.

Logo no início, os sons chegam de todas as direções, fazendo o público se sentir parte integrante daquilo tudo. Outros sentidos são estimulados: o estardalhaço de máquinas de escrever suscita uma repartição nervosa, onde os contínuos desconfiados recebem de manhã o alento do café quentinho. Pela janela, percebe-se o Rio da Prata, que deixa o ar abafado e úmido.

Toda a montagem é construída para levar o espectador a lugares distantes, encantados, fruto de narrativas primorosas às quais o grupo adiciona pe­­que­­­nas surpresas sensoriais.

O que o Ojcuro chama de teatro cego está baseado numa ideia preciosa: a de que todos são iguais. E se entre as quatro paredes cenográficas a ausência de visão limita a fruição de quem tem essa deficiência, baixa-se a cortina visual para todos.

Na saída, já com as luzes acesas, cada um observa como é a sala onde passou aqueles 70 minutos de mistério. Certamente bem diferentes do imaginado.

Ver sem enxergar

O personagem trágico Édipo passou por uma experiência inversa. Estava andando pela vida, metaforicamente cego para sua condição maldita. Quando pequeno, uma profecia prevera que ele mataria o pai e se casaria com a mãe. Horrorizados, os genitores o enviaram à morte, mas, por pena, ele foi poupado pelo algoz. Só depois de cumprir ipsis litteris o que para ele estava reservado, o agora rei de Tebas inicia um processo de descoberta, rumo a enxergar quem é e o que fez.

Ver a realidade claramente acaba sendo demais, e ele próprio fura os olhos. No breu, parte em uma jornada ainda mais profunda de autoconhecimento.

Ontem e hoje, o teatro se baseia numa explosão de incitações aos sentidos para nos fazer mudar por dentro. Que venha então o Festival de Teatro, festa que começa na próxima terça-feira, para nos envolver nessa arte transformadora.

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