• Carregando...

Pode-se escrever a história da literatura brasileira, como, aliás, se faz rotineiramente, sem mencionar Austregésilo de Athayde (1898-1993) – mas não é possível fazê-lo ignorando a Academia Brasileira de Letras e, menos ainda, a desta última sem que nela figure o seu vulto epónimo. Ligado ao jornalismo e à vida literária, atividades transitórias e instáveis por natureza, foi um fator de permanência, um construtor, no sentido próprio e no figurado, legando à posteridade dois monumentos complementares, embora antagônicos, a sede temporal para os acadêmicos vivos e o mausoléu para os falecidos, que assim continuam juntos na imortalidade. Digo-o sem nenhuma intenção irônica, mas, antes, pensando naqueles "túmulos" poéticos em que se perpetua a memória dos grandes homens.

Assim como a Academia Francesa instituiu sabiamente o posto de secretário perpétuo, perpétua deve também ter parecido aos imortais mais impacientes a longa presidência de Athayde (por 33 anos), levando-os a reiteradas rebeliões de serralho, logo abafadas pela prudência dos demais. Ele mesmo encarava tudo isso com a filosofia apropriada: "Já enterrei 56 acadêmicos", observou a Josué Montello à beira do mausoléu, anexo por assim dizer necessário ao Petit Trianon. Para ele, tudo começou com a eleição de 1951: "Chego à Academia, pela primeira vez depois de eleito e sinto-me intimado. Na quinta-feira passada, por 22 votos, reunidos no primeiro escrutínio, conquistei a 'imortalidade'. Dezessete futuros companheiros haviam manifestado preferência pelos meus três competidores e grande era o meu temor de que alguns deles revelassem ressentimento pela derrota sofrida e não me recebessem cordialmente. A campanha deixou alguma amargura no meu coração.

Velhos amigos, carregados de compromissos através dos anos, tendo mesmo assumido a responsabilidade de estimular-me à apresentação da sonhada candidatura, com uma insistência que não podia deixar-me dúvidas sobre a sua fidelidade, chegada a hora, fingiram-se de mortos ou ficaram frios e enigmáticos" (Austregésilo de Athayde. Melhores crônicas. Sel. e pref. de Murilo Melo Filho. São Paulo: Global, 2008).

Era mais uma das costumeiras "traições" eleitorais de que está cheia a história da Academia, primeira lição que recebia já à entrada, logo complementada pela segunda: "Ia encontrar a todos no famoso salão de chá e estava indeciso sobre a maneira de dirigir-me aos novos confrades de forma a não deixar perceber a qualquer deles outro sentimento que não fosse a satisfação e a honra de começar a pertencer à ilustre Companhia". Existe, como se sabe, a prática de incinerar os votos após a apuração, tornando unânimes, por convenção, todas as eleições. Mesmo assim, faltou um voto para que Juscelino Kubitschek fosse eleito – voto, afirmava Josué Montello, que misteriosamente desaparecera da urna...

Austregésilo de Athayde declarou a sua predileção pela memorialística: "Gosto de fazer andanças pelo passado, lendo livros de memórias, e quanto mais simples e objetivos, sem comentários ou portentosas interpretações da vida e do mundo, mais os aprecio. [...] Sou dos que o estimam [o gênero] e encontram nele uma fonte de verdade e conhecimento do passado, superior mesmo à dos livros convencionais de História. Se é certo que o memorialista tem natural tendência a colocar-se no centro da narrativa e atribuir-se um papel, às vezes exagerado, na marcha dos acontecimentos, não é também menos exato que oferece à consideração do historiador minúcias e enredos que constituem a parte secreta na evolução e determinação do procedimento social e político dos indivíduos e das nações".

Nessas perspectivas, pode-se imaginar o interesse e a importância das suas próprias memórias, se é que as escreveu. Em tal caso, tudo o que calou por discrição funcional e boas maneiras nos três decênios em que exerceu a presidência, teria incomparável valor histórico e documental. Eis, por exemplo, esta bela abertura de um livro de memórias: "Nasci na praça da Feira e tenho um irmão de peito a quem minha mãe amamentou, porque tinha excesso de leite [...]". Nem mesmo as indiscrições chegavam a contrariá-lo: "Vivem 40 homens vitaliciamente unidos, como se fossem membros de uma família que eles próprios escolheram, com o seu voto livre", diz a respeito do Pequeno Anedotário, de Josué Montello: "São cultos e ilustres [os acadêmicos], "mas nem por isso deixaram de ser humanos: "O Pequeno Anedotário faz parte da história espiritual da casa. Através de pequenos contos, rápidos traços, palavras largadas ao acaso das conversas, observações porejando ironia e malícia, revides de esgrimistas flexíveis e sutis, os grandes homens transfiguram-se em realidades novas, podemos conhecê-los melhor, sem os formalismos e as convenções dos retratos colhidos nas poses estudadas".

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]