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Declarando que escrevera o Brás Cubas pela "forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre", Machado de Assis, talvez sem querer, armou uma armadilha para os críticos, levando-os, por um lado, a procurar semelhanças e derivações (com o prazer vicioso de denunciar os plágios) e, por outro lado, a ignorar ou menosprezar o que vem em seguida, e é o essencial: "não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo [...] escrevi-a com a pena da galhofa e a tinha da melancolia [...]". Armadilha ou não, ficava o mote para exercícios eruditos em evidente inversão de perspectivas, quando criticar consiste precisamente, como ensinava Gustave Lanson, em identificar o que um autor tem de único – no caso, aquilo em que Machado de Assis se distingue de Sterne.

Curioso é que Clóvis Beviláqua, primeiro entre nós a mencionar as fontes sternianas, nada haja percebido da inovação representada pelas Memórias póstumas (ou, amigo de Sílvio Romero, haja decidido ignorá-la), levando-o a lamentar que a literatura brasileira não tivesse "lampejos vívidos de espírito, essa vivacidade palpitante a trair uma existência alegre e cheia, um caráter igual e vigoroso; não temos a fina ironia que se empana sob o tênue véu de uma doce melancolia, nem a forma do desdém, do motejo, do escárnio que se enroupa no humour de Sterne [...]". Era um jovem de 21 anos, que escrevia (o Brás Cubas é de 1881) sendo notável, ou indiscreta, a coincidência com o vocabulário machadiano: ironia/melancolia, escárnio/motejo. (Épocas e individualidades, 1899).

Retomando a estrada batida, Sérgio Paulo Rouanet partiu em busca de similaridades e influências: "Diderot deve algo a Sterne; Xavier de Maistre deve algo a Sterne e a Diderot; Almeida Garrett deve algo a Sterne, Diderot e a Xavier de Maistre e Machado de Assis deve algo a Sterne, Diderot, Xavier de Maistre e Almeida Garrett" (Riso e melancolia. A forma shandiana em Sterne, Diderot, Xavier de Maistre, Almeida Garrett e Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007). É como nas gerações bíblicas em que cada patriarca gera o seguinte, de forma que, de diluição em diluição, Machado de Assis aparece como a última dinamização homeopática da essência sterniana original. Assim, tudo está em tudo, porque, de estante em estante, (ou, já agora, de click em click...), a erudição livresca não chega nunca às fontes primevas.

O que, a princípio, parecia sterniano viria, dizem os eruditos, da sátira menipéia, "gênero criado por Menipo de Gandara (século III A.C.) e que, passando por Varrão, Sêneca, Luciano de Samotrácia, Erasmo de Rotterdam e Robert Burton, teria chegado a Sterne". Robert Burton? Claro, não se pode falar em melancolia sem evocá-lo, assim como Enylton de Sá Rego já imaginou que, no Quincas Borba, o nome cabeleireiro Lucien é clara alusão a Luciano de Samotrácia (W.M. "Idéia fixa". Pontos de vista 12, 1996). Cabe pensar que, tivesse tantos "ecos" na cabeça, Machado de Assis provavelmente nada teria escrito.

E, como esquecer o Barroco? Como esquecer Walter Benjamin? Melhor ainda se estiverem juntos. De clik em click lá chegamos: "Poderíamos encontrar outra grande tradição cultural cujas características correspondessem mais de perto às da forma shandiana? Há algum tempo arrisquei uma resposta afirmativa. Essa tradição seria a do Barroco [...] na conceituação que lhe deu Walter Benjamin [...] a forma "shandiana" "teria uma relação com o Barroco" [...]". É, contudo, hipótese "altamente especulativa", que o próprio Rouanet espera que não "contamine" a hipótese principal... a que postula a autonomia e a especificidade da forma shandiana".

Rouanet encara as digressões narrativas como excrescências do romance, por isso mesmo matéria estranha e heterogênea. Ora, elas é que formam a narrativa, tanto para os leitores da época quanto para os nossos, ou seja, para os que encontram na leitura o prazer da leitura, obras a serem lidas "com pachorra" e lentidão, conconrda Rounet, para o que "não tem pressa em chegar". Sempre foram parte integrante da história desde que há homens e que escrevem, para repetir La Bruyère. Formam a substância do romance romântico, bastando lembrar José de Alencar, mestre do suspense (O Guarani, As minas de prata, Senhora, para limitar os exemplos).

O "shandismo" será uma atitude diante da vida, um tipo de temperamento, única acepção em que cabe aplicá-lo ao personagem de Sterne, sem relação necessária com as técnicas narrativas, a "forma livre" mencionada por Machado de Assis, sendo tentador concluir que Brás Cubas, tendo tudo de machadiano, nada ou pouco terá de shandiano.

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