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Além de ser a obra-prima na produção de Roquete-Pinto, Rondônia é uma obra-prima na literatura das viagens filosóficas: "Trata-se do livro que relata a viagem empreendida por Roquette-Pinto através de uma região localizada no que são atualmente os estados de Mato Grosso e Rondônia em 1917, cuja primeira edição foi publicada nos Archivos do Museu Nacional. Rio de Janeiro, em 1917" (Roquette-Pinto. Rondonia: Antropologia. Etnografia. 7ª ed. (fac-similar). Orgs. Nísia Trindade Lima, Ricardo Ventura Santos e Carlos E. A Coimbra Jr.. Pref. Alberto Venâncio Filho. Rio: Fiocruz / Academia Brasileira de Letras, 2005).

Pelo estilo deliberadamente simples e pelas observações realistas do pormenor cotidiano, Rondônia já é um livro modernista por antecipação, surpreendendo pouco que nele se hajam reconhecimentos os jovens turcos da revolução literária. Quando se fala nas fontes eruditas de Macunaíma, o que é tanto mais perfeitamente correto por trazerem a garantia germânica, esquece-se, em geral, essa fonte "literária" e psicológica, brasileira e precursora, mais do que uma aproximação teórica: em correspondência existente na academia Brasileira de Letras, Mário de Andrade afirma que, houvesse conhecido a tempo os trabalhos de Roquette-Pinto, tê-los-ia aproveitado na elaboração de Macunaíma: a partir de 1928, é frequente a sua correspondência com Roquette-Pinto, solicitando informações sobre os Terena e recebendo como resposta um relatório completo, assim como indagando se os índios tinham canto nosso!’ [...] mostrando-se também entusiasta das publicações do Museu Nacional, comentando as visitas feitas e agradecendo o convite para colaborar no Boletim Museu (Alberto Venâncio Filho). Acrescente-se que Mário de Andrade nele encontrava um mestre de nacionalismo, cavalo de batalha e pavilhão de combate dos modernistas. Era o momento da Liga de Defesa Nacional, fundada no Rio de Janeiro por Olavo Bilac, Pedro Lessa e Miguel Calmon, resultado e núcleo dinamizador de toda essa atividade. O poeta partiu imediatamente em excursão pelo sul do país, a começar pelo Rio Grande, no que a Revista do Brasil de outubro denominou "o seu apostolado de civismo e patriotismo"; em dezembro, o mesmo periódico declarava que "um dos mais belos resultados da campanha nacionalista de Olavo Bilac é a fundação da Liga Nacionalista, com sede nesta Capital".

No Distrito Federal, os estudantes das escolas superiores fundaram a Colmeia, sociedade de propaganda nacionalista, que passou a promover conferências sobre o Brasil, as três primeiras a cargo de Roquette-Pinto, que, no ano seguinte publicaria Rondônia, clássico dessa bibliografia. Proferida na Colmeia e recolhida em Seixos rolados, dizia Roquette-Pinto na conferência "O Brasil e a antropogeografia": "Abelha estranha, e mais velho entre vos, meus jovens amigos, não vos trago senão o mesmo conhecido mel do perene amor à nossa terra e ao nosso povo; algumas gotas desse patriotismo firme e modesto que na vossa ‘Colmeia’ também se elabora".

E acrescentava, marcando a temperatura ideológica do momento: "Um punhado de maus brasileiros, filhos ingratos ou réprobos enteados do Brasil, anda espalhando, na alma deste povo ingênuo, a crença desalentadora, a religião do pessimismo. Para os tristes sacerdotes do rito infeliz, o esforço desinteressado é uma tolice; o estudo ardente é uma ‘fita’; a moral pública, uma mentira [...]. Não. O Brasil não é um terreno baldio, campo sem dono aguardando energias estranhas. Habita-o um povo que, para vencer suas dificuldades históricas, apenas precisa que lhe digam palavras tônicas, capazes de lhe infundir a convicção do valor próprio. Patriotismo gera-se pelo exemplo e a palavra propaga o exemplo".

Era um professor de energia, retomando a lição do malsinado conde de Afonso Celso, sumariamente ridicularizado pelos que não o leram, e se leram não entenderam. A essa altura, a descrença amarga e corrosiva no Brasil, fermentando o clima das revoltas militares, culminaria na revolução institucional de 1930, tudo, bem entendido, sob o pavilhão nacionalista: "O Brasil precisa do nosso esforço para a nacionalização definitiva", dizia Roquette-Pinto ao tomar posse no Instituto Histórico ("O segredo das Uiaras", também recolhido em Seixos Rolados).

Ele foi também testemunha da rapidez com que podem ocorrer as mudanças culturais no encontro das idades, marcadas pelo que Taine chamava os "pequenos fatos significativos", tal a existência contemporânea e contígua de idades diferentes. Assim, por exemplo, os Nambikuára "apreciam imensamente os fósforos [...] por um machado trocam tudo. Não há, para qualquer deles, nada, no mundo de maior valia. O ferro, o ferro é o ouro da Serra do Norte". Que gente é essa, de onde veio, por onde passou?, pergunta Roquette-Pinto a certa altura, transformando a expedição etnográfica e científica em viagem filosófica.

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