Para os brasileiros de outros tempos, Eça de Queiroz não era um escritor – era um narcótico, havendo quem lhe soubesse páginas inteiras de cor, veneração que atingiu o ponto culminante nas comemorações do centenário, em 1939. Pode-se perguntar, perguntava eu no momento de outro centenário (o do falecimento), se ele continua a ser, em nossos dias, como afirmava Álvaro Lins, "o autor português mais lido, mais comentado, mais compreendido, mais amado". Tudo indica, entretanto, que os últimos fiéis do culto estão agora praticando os seus ritos secretos nas catacumbas da literatura, mantendo a memória de terem sido os primeiros autores de livros sobre ele: o gaúcho Miguel de Mello (1877 – 1929) com Eça de Queiroz: a obra e o homem (1911): Viana Moog, com Eça de Queiroz e o século XIX (1938) e Álvaro Lins com a História literária de Eça de Queiroz (1939), que lhe abriu caminho para tornar-se o crítico mais prestigioso do seu tempo.

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Sem esconder o mau humor por lhe terem roubado a primazia, João Gaspar Simões publicaria em 1945 o que viria a ser a biografia padrão (Eça de Queiroz: o homem e o artista), mudando-lhe o título para Vida e obra de Eça de Queiroz a partir da segunda edição (1973). No que concerne aos estudos biográficos, A. Campos Matos, sem mencionar aqueles volumes, observa que, "nessa área queiroziana, os autores brasileiros anteciparam os portugueses", acrescentando que também os precederam, em 1949, com um dicionário de citações (Afonso de Carvalho. Como disse Eça de Queiroz...) longínquo antecessor do seu próprio e excelente Dicionário de citações de Eça de Queiroz. (Lisboa: Livros Horizonte, 2006).

Aí está o quadro fascinante de um espírito em movimento, de inteligência sempre alerta, da inquietação existencial, da observação irônica, do ceticismo orgânico. Comecemos com uma referência ao clássico dessa estante que é o livro de Heitor Lyra sobre as suas relações intelectuais e emocionais com o Brasil, e não só as suas próprias mas, também, a dos portugueses em face de antiga colônia: "pobres de nós, nunca fomos decerto para o Brasil senão amos amáveis e timoratos. Estávamos para com ele naquela melancólica situação de velho fidalgo, solteirão, arrasado, desdentado e trôpego, que treme e se baba diante de uma governanta bonita e forte. Nós verdadeiramente é que éramos a colônia: e era com atrozes sustos do coração que, entre uma salve-raínha e um Lausperene,estendíamos para lá a mão à esmola".

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Por curiosidade, observei alhures a propósito do livro de Heitor Lyra, as suas relações com os brasileiros (pelo menos com os cinco grandes homens que se contam entre os seus amigos mais chegados) foram sempre excelentes e, mais do que isso, enriquecedoras e fecundas, enquanto, contraditoriamente, as suas relações com o Brasil foram sempre tempestuosas e acidentadas, marcadas por fatos desagradáveis ou condenadas ao insucesso. Realmente, o que nelas surpreende está em que, filho de brasileiro e tendo aprendido o português com o nosso sotaque, sempre alimentasse, expressa ou tacitamente, a nosso respeito enquanto nação, um indisfarçável complexo de superioridade.

Não são raras em sua obra, notadamente nos Maias, as referências depreciativas ao português do Brasil e, em geral, ao caráter dos brasileiros. É certo que fazia ao Brasil intelectual as mesmas restrições que Portugal lhe inspirava: "A famosa carta de alforria de 29 de agosto de 1825 não serviu para as inteligências. Intelectualmente, o Brasil é ainda uma colônia – uma colônia do Boulevard. Letras, ciências, costumes, instituições, nada disso é nacional; – tudo vem de fora, em caixotes, pelo paquete de Bordéus, de sorte que esse mundo, que orgulhosamente se chama novo, o Novo-Mundo, é na realidade um mundo velhíssimo, e vincado de rugas, dessas rugas doentias, que nos deram, a nós, vinte séculos de literatura". Dói um pouco, mas já o havíamos percebido. Claro, mudamos de colonizador, no processo degenerativo e desnacionalizante de que a língua falada e escrita é o documento confirmador.

Não era mais favorável a sua opinião sobre a América chamada Latina, na qual, como diz a canção revolucionária, somos todos hermanos: "O sul-americano é de todos os seres humanos, o mais indiferente à ‘letra-redonda’. São chamados civilizados – por se saberem servir, mais ou menos gochemente, dos instrumentos de civilização que outros inventam: mas eles próprios nunca tiveram um ato de civilização original – isto é, nunca tiveram iniciativa na esfera do Direito, da Filosofia, da Região, da Arte, nem uma só idéia sua, nem um feito, nem uma descoberta, nem um folhetim, nem um dito!". Essa era, aliás, a opinião assente dos europeus da época sobre os países de là-bas. Escrevendo nos finais do século, ele teria mais razão no seu pessimismo do que a terão, em nossos dias, os "latino-americanos" nas suas ilusões e nas suas queixas, mas o que importa, no caso, são os pontos de vista e as verdades aceitas que ele compartilhava com os europeus dos seus dias.

Tendo passado de um anarquismo teórico para um monarquismo sentimental, encarando a República com irredutível descrença (tanto a portuguesa quanto a brasileira), havia no Eça de Queiroz que olhava ao redor um Eça de Queiroz que pressentia o futuro: "É possível que neste gozo que nós hoje conservadores temos de triturar os Messias socialistas, encarcerar os Proudhon, mandar para a Sibéria os Bakounine, e crivar de multas os Félix Pyat – venha a custar caro a nossos netos. Com o andar dos tempos, todo grande reformador social se transforma pouco a pouco em Deus: Zoroasto, Confúcio, Maomé, Jesus, são exemplos recentes [...]. E assim como hoje erigimos capelas aos Santos Padres... talvez um dia, quando o socialismo for religião do Estado, se vejam em nichos de templo, com uma lamaprina defronte, as imagens dos Santos Padres da revolução [...]".

O que aconteceria no século seguinte e não apenas em sentido figurado, processo em que as religiões socialistas iriam conhecer o inevitável desgaste das instituições que duram e que, para durar, renegam, clara ou ardilosamente, as crenças de que nasceram. Eça de Queiroz era homem do século XIX nas suas certezas e convicções, o século que um direitista fanático chamou de "es-túpido’. Mas, vivia então no esplendor da civilização que ainda teve tempo de exorcismar no seu último livro que, simbolicamente, ficou por concluir.

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