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Do ponto de vista da Crítica, a literatura é "um conjunto de obras, não de fatores nem de autores", diz Antônio Cândido, a serem estudantes por um método "que seja histórico e estético ao mesmo tempo". De minha parte, eu eliminaria as excludentes, porque literatura é também fatores e autores, história literária desenvolvida na longa duração, conforme está implícito no título do seu livro (Formação da literatura brasileira). Do ponto de vista da História, trata-se de uma acumulação de fatos interligados (é, justamente, o que a constitui em sistema) e sujeitos à prova da verdade.

Tomemos, por exemplo, o caso do poeta José da Natividade Saldanha, figura lendária das revoluções latino-americanas do século 18. Segundo a lenda, teria morrido afogado numa valeta de esgoto, "certamente desacordado pela queda", lenda dura de morrer porque Antônio Cândido ainda a endossa. Ora, a verdade estava esclarecida desde 1842 e por uma testemunha autêntica, o general José Maria Obando, cujas memórias registram que un teniente Saldaña, brasileiro estava entre os prisioneiros que fizera, esclarecendo ainda: "mandei passá-los pelas armas na praça de Cali, tanto por seus delitos como pela necessidade de um castigo exemplar em uma cidade que havia sido vítima dos excessos de uma parte do populacho" (W. M. "O poeta fuzilado". Pontos de vista 11, 1995).

Propondo suposições e conjecturas argumentativas por evidência comprobatórias, os sábios da Escritura decidiram que Tomás Antônio Gonzaga é, não só o autor das Liras que há dois séculos correm sob o seu nome, mas também das Cartas chilenas, anonimamente publicadas depois de sua morte, a partir de manuscritos não autenticados. O certo é que, no que se refere à autenticidade, as duas obras são equações de múltiplas incógnitas, de forma que privilegiar uma delas corresponde a ignorar as demais a partir de um círculo vicioso nos seus próprios termos. Mal escondendo as perplexidades, a crítica dá por provada a autoria de Gonzaga, acrescentando-lhe supositícias colaborações de outros poetas, tudo segundo a argumentação de M. Rodrigues Lapa (As "Cartas chilenas". Rio: Instituto Nacional do Livro, 1958).

Revelando o caráter arbitrário dessas atribuições, o eminente erudito português confessa um "fraco" por Gonzaga, mas não chega ao ponto de apresentar as Cartas chilenas como grande obra literária, o que, de fato, seria inaceitável. Admitida essa autoria, resta um fato ainda mais perturbador, isto é, como aceitar que tão grande poeta tivesse escrito uma obra literariamente tão medíocre. Ao que dizem os maledicentes, Gonzaga estaria agredindo o Fanfarrão Minésio por causa de rivalidade amorosas, ambos apaixonados pela segunda Marília da história, esta menos etérea do que a outra, porque lhe deu um filho; os de Marília, depois do desterro do poeta, foram três, na conta de Richard F. Burton, "loiros, de olhos azuis", filhos de outro Ouvidor, o venturoso Dr. Queiroga. Fatos públicos e notórios em Vila Rica, segundo Eduardo Frieiro.

A Marilia morena (ou mais do que isso) seria a musa das Cartas chilenas, que assim ficaria provada, por vias travessas, se assim me posso exprimir, a autoria de Gonzaga. A história das Liras é curiosa, observa Antônio Cândido: com o poeta ainda preso no Rio de Janeiro, "apareceu a primeira coleção das Liras, com as iniciais T. A.G.", originando um problema bibliográfico do qual os historiadores fogem quanto podem. Com efeito, o auto de apreensão dos seus bens em Vila Rica registra que "todos os papéis achados... foram logo arrecadados" segundo as normas judiciais, o que exclui a remessa para a tipografia. O mesmo se refere aos poemas compostos na prisão: levando-se em conta a lentidão das comunicações marítimas, cuja travessia, quando tudo corria bem, levava de 45 a 60 dias, não haveria tempo útil para a publicação lisboeta ainda em 1792. Lembremos que o príncipe D. João saiu de Lisboa a 29 de novembro de 1807, chegando à Bahia a 29 de janeiro do ano seguinte: na viagem de regresso, saiu do Rio a 26 de abril de 1821, ancorando em Lisboa a 3 de julho. Seu filho saiu do Rio a 13 de abril de 1831, levando 47 dias até Faial.

Acresce a circunstância ainda mais perturbadora, porque inexplicável: a indiferença de Gonzaga com relação ao livro, sobre o qual jamais se manifestou, nem diante do sucesso editorial, nem diante das contradições que se seguiram. Comportamento talvez único, por parte de um poeta, na história das literaturas.

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