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 | Miguel Nicolau/Especial para a Gazeta do Povo
| Foto: Miguel Nicolau/Especial para a Gazeta do Povo

Faz algumas semanas que estamos preparando a partida. Arrumar malas, cancelar contratos, vender o carro etc. Estas coisas de quem deve interromper uma rotina em um lugar onde dificilmente voltará a morar.

Visito espaços que me marcaram, contando para as pessoas que, bem, estou indo embora.

– Não pensou em ficar morando aqui? – os portugueses invariavelmente me perguntam.

Dou respostas diplomáticas. Sempre projeto morar nos lugares por onde passo. Mas como personagem ficcional de mim mesmo. Como um outro eu.

Esta semana, fui à Casa das Bananas, o armazém centenário no centro histórico, para tomar uma dose de Moscatel de Setúbal, engarrafado especialmente para este estabelecimento. Derrubei dois copinhos, informando o proprietário que estava ali em missão de adeus.

– O menino comeu o arroz de sarrabulho de Ponte de Lima?

Não. Não comi. Estive três vezes na cidade, mas o tradicional prato não chegou à nossa mesa por protestos familiares. Vai sangue.

Prometo tentar comer. Meu interlocutor diz que não vai dar, só é servido no inverno.

Depois me pergunta se provei o cozido português de Portalegre, no Alentejo. E de novo tenho que confessar que não. Ele me olha, zombeteiro, como se dissesse que então eu não havia descoberto a culinária portuguesa.

Pago a conta, vencido por um morador tradicional, que domina os códigos. Ele pede para eu esperar um pouco, vai a um balcão especial e traz um moscatel roxo, mistura do tradicional e de um envelhecido, servindo-me como cortesia uma dose.

Pelo menos não ignorei esta bebida. Enquanto sorvo pequenos goles, deliciado, ele me fala que a melhor safra da década de vinho maduro foi a de 2011. Tento lembrar se tomei algum. Foram muitos de 2013, recomendado como um ano ótimo.

– Nem se compara com 2011.

Preparo a retirada. Perdi todas nesta tarde. O homem é um profissional. Viro o último gole e ele me pergunta dos vinhos verdes, produzidos só aqui no Norte. Contabilizo os que conheci.

– E o da Brejoeira, de Monção?

– Estive lá no Palácio da Brejoeira – respondo, concluindo a conversa.

Ele me acompanha até a rua.

– Procure os vinhos de 2011. Talvez ainda ache alguma garrafa no mercado.

– Vou fazer isso.

– Até porque o menino não vai estar aqui quando chegarem os vinhos da safra de 2015.

– Vai ser boa?

– Muito melhor do que a de 2011. Quem sabe não volta a Portugal só para provar.

Ouço isso quando já estou descendo a Rua do Souto, vendo o Arco da Porta Nova (projeto barroco de André Soares). Logo, passo na frente do belo prédio da extinta Livraria e Editora Cruz, hoje funcionando como bar, e volto a ficar alegre.

Levo na mala uma edição do “Auto da Alma”, de Gil Vicente, de 1976. As folhas ainda lacradas. E vai continuar assim não sei até quando.

Só podemos conhecer uma cidade, um país, por pequenos fragmentos. Daí me lembro que comprei uma malga centenária da Fábrica de Loiça Sacavém. Ela ficará na minha mesa de trabalho.

Juntando estas e outras pequenas lembranças, terei Portugal inteiro comigo.

Miguel Sanches Neto tem 35 livros publicados. Ele vive em Braga e escreve a série “Cartas de Portugal” para a Gazeta.
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