• Carregando...
 |
| Foto:

Arlequins do agreste

Escrita em 1955, Auto da Compadecida é uma ode ao agreste festivo, à literatura de cordel e à religiosidade tropical e sincrética. A peça foi o grande acontecimento do Primeiro Festival de Amadores Nacionais, realizado em janeiro de 1957, no Rio de Janeiro, e trazia toda a simplicidade, despojamento e espontaneidade da obra de Suassuna, num tonel de humor e ironia inigualável.

Sob uma percepção histórica, Auto da Compadecida revigorou a tradição das peças medievais do século 14, conhecidas como Milagres de Nossa Senhora. A síntese do herói profano em dificuldades é relida em um panorama que mescla influências das comédias teatrais italianas e dos autos de Gil Vicente.

João Grilo é este anti-herói meio macunaímico, um arlequim que se vira como pode, de acordo com as circunstâncias. É o espaço aberto do riso desbragado, do chiste, da carnavalização, a farsa e a caricatura como elementos de tradução, um tipo de exagero que não soa como fora do tom porque autêntico, mesmo quando flerta com a grosseria.

Apesar de uns momentos de antiamericanismo ingênuo, marca das bases que os Estados Unidos tinham no Nordeste durante a Segunda Guerra Mundial, a peça é o que chamamos de programa de humanidade, uma lição de tolerância. A adaptação de 2000, dirigida por Guel Arraes, foi um dos maiores sucessos de bilheteria do cinema nacional e capta com sagacidade a metalinguística do original, como quando João Grilo diz que ficará morto para o julgamento final, conquanto que longe do sacristão.

A epopeia total

Apesar de Auto da Compa­­decida e O Santo e A Porca serem destas leituras obrigatórias – e merecidas – de vestibulares nacionais, o grande legado de Suassuna é o suntuoso e onírico Romance d’a Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue Vai-e-volta, de 1971.

Romance total, aqui encontramos um autor essencialmente dado à missão de erigir a sua Nordestíada, a epopeia de um Brasil sebastianista, ensimesmado em si e incoerente ao infinito. A obra é narrada pelo bibliotecário, editor de folhetos, astrólogo e memorialista Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, um sujeito místico e satírico, sangrento e intimista, um retrato da ambiguidade e contradição – o desterro de ser, em condição, um sertão interior.

Livro-monumento, seus contornos se assemelham à literatura regionalista da década de 1930, na tradição de Guimarães Rosa e José Lins do Rego. Contudo, seu ambiente fantasioso não tem paralelo no cânone literário nacional. Quaderna surge como um cavaleiro retumbante e esplendoroso, entrecortado por uma narrativa de sonho, multicolorida, cheia de reviravoltas e sturm and drangs. É um personagem-poeta que avaliza a tradição das narrativas ibéricas, um arcaico diante de um mundo turbulento.

Em 2009, Luiz Fer­­nando Carvalho adaptou A Pedra do Reino para a tevê, naquela que é uma das maiores transposições literárias já realizadas. Em cinco episódios, a série é uma aula de respeito à estética de Suassuna, autor que levou às últimas consequências a ideia de rimar como um pobre popular.

Latinidade solar

Na tradição greco-romana das peças centradas em espaço único e que se sucedem em apenas um dia, O Santo e A Porca – O Casamento Suspeitoso, de 1957, é a pitoresca e divertidíssima releitura de Aulularia, do dramaturgo Plauto.

A peça, dividida em três atos, foi montada pela primeira vez no Rio de Janeiro, em 1958, sob a direção e montagem de nada menos do que o célebre polonês Zbigniew Ziembinski, que interpreta o velho Eurico Arábe, e Cacilda Becker no papel da cobiçada Margarida.

Tudo se passa na casa do avarento Eurico Arábe, também usualmente conhecido como Euricão Engole-Cobra. A empregada Caroba é a personagem espertalhona que alimenta a rede de intrigas da trama, envolta em uma possibilidade de casamento entre Euricão e Margarida. Em meio a tudo isso, uma consagrada porca de madeira, símbolo do profano frente ao religioso.

São as primeiras manifestações dos elementos do Movimento Armorial, esta busca pela aproximação do refinamento ao cotidiano popular, considerando que, no âmbito teatral, a produção de Suassuna sempre travou diálogo com o Renascimento, o artista como sábio e intérprete direto da realidade. O Euricão suassuriano, por exemplo, é uma revisão do Euclião de Plauto.

Se temos no latino uma panela guardada na lareira, aqui temos uma porca guardada na sala ao pé do santo. É uma peça de evidentes ares maniqueístas, mas com grau genuíno de deboche e sarcasmo, fazendo tudo soar como fidedigno, em seu espírito cândido de exame e censura.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]