Nova York - Tem muito escritor ou artista que fantasia viajar de volta no tempo para a efervescente Paris da década de 20, bebericar um absinto com Hemingway no Les Deux Magots ou jantar um choucroute garnie com Picasso no La Rotonde. Imagine o que não conversariam! O que tem encantado o público no novo filme de Woody Allen, Meia-noite em Paris (em cartaz no Brasil desde sexta-feira), é que o protagonista, Gil, um desiludido roteirista de Hollywood interpretado por Owen Wilson, realiza exatamente essa fantasia.
Esbarra em Scott e Zelda Fitzgerald numa soirée elegante, na qual escuta Cole Porter cantando "Lets Do It (Lets Fall in Love)". Recebe conselhos sobre escrever de um lacônico Hemingway, convence Gertrude Stein a ler o manuscrito de seu romance e se apaixona pela amante de Picasso. Conhece Salvador Dalí, T.S. Eliot, Djuna Barnes, Josephine Baker, Luis Buñuel, Man Ray e outras figuras do elenco de grandes talentos, entre expatriados e boêmios que povoaram a Paris da Era do Jazz. Recuperando-se da loucura da Primeira Guerra Mundial, o que dava ensejo a romances e pinturas encharcados de desilusão, a cidade era o centro do universo artístico à época, um momento em que, de fato, todas essas figuras legendárias convergiram para lá.
"Se você tiver a sorte de ter vivido em Paris quando jovem, não importa por onde ande pelo resto de sua vida, leva isso junto, porque Paris é uma festa ambulante", escreveu Hemingway em Paris é uma festa, seu livro de memórias publicado postumamente, em 1964.
O filme pressupõe, por vezes, que os espectadores conhecem os detalhes dessas vidas luminosas, de modo que o livro pode ser útil para compreender algumas das relações complicadas que fizeram de Paris, naquele tempo, um sonho e, muitas vezes, nem tanto.
Em 1922, Hemingway e sua primeira mulher, Hadley, foram morar num apartamento de dois quartos, perto da Sorbonne, que não tinha água quente nem banheiro interno. Ele também alugou um quarto na esquina de casa para escrever, algo como o "sótão com clarabóia" que Gil tanto quer para si. O de Hemingway tinha uma vista das chaminés e dos telhados que Allen captura em takes que denotam adoração pela cidade.
Hemingway também descobriu a Shakespeare & Company, uma livraria perto do Jardin du Luxembourg cuja proprietária era Sylvia Beach, e que se tornou ponto de encontro para os americanos em Paris. A livraria onde Hemingway pegava emprestados livros de Turgueniev e Tolstoi faz uma ponta no filme.
Gil conhece Hemingway numa espelunca não muito diferente do lendário café Dingo, onde teve início a não tão bela amizade entre Hemingway e Fitzgerald, que quase apagou de bêbado na ocasião. Hemingway, parodiado no filme em frases como "nenhum assunto é tão ruim se a história for verdadeira e a prosa, clara e honesta", tinha inveja da aparente facilidade de Fitzgerald para escrever com lirismo em obras como O Grande Gatsby. Em Meia-noite em Paris, Hemingway diz a Fitzgerald que Zelda, ela também escritora, via o marido como um concorrente. Mas Paris é uma festa oferece um relato mais escandaloso. Hemingway passa a desprezar Zelda em parte porque ela havia traído Fitzgerald com um aviador francês e em parte porque culpava a tempestuosidade decadente dela por arruinar a produtividade do marido.
Picasso e Matisse, que aparecem no filme, também mantinham uma rivalidade, mas que mal é abordada em Meia-noite em Paris: um ecoava alguns críticos diriam roubava os temas do outro. Ambos chamaram a atenção do colecionador de arte Leo Stein e de sua irmã, Gertrude.
No filme, Gil fica sabendo que Gertrude Stein comprou um Matisse por 500 francos e, na esperança de fazer fortuna em sua viagem no tempo, pergunta a ela se não poderia comprar uns "seis ou sete" Matisse também. Casado duas vezes, Picasso ficou famoso por suas amantes, e no filme Marion Cotillard interpreta Adriana, uma caprichosa e melancólica representante de todas as amantes, modelos e musas do pintor. Ela alega ter sido amante também de Modigliani e Braque. Na vida real, as amantes de Picasso eram relativamente fixas. Marie-Thérèse Walter, que tinha 17 anos quando o conheceu, ficou oito anos com ele e teve uma filha do pintor, Maya. Dora Maar, que ele conheceu em 1935, foi sua amante por pelo menos oito anos também.
Nascido em Indiana, Cole Porter manteve um apartamento elegante no qual dava festas hedonistas, ousadas porque misturavam seus amigos gays e heterossexuais. Porter conheceu Linda Lee Thomas, uma divorciada de Louisville oito anos mais velha, que sabia que ele era gay, e casou-se com ela. Os dois montaram, perto de Les Invalides, um apartamento ainda mais portentoso as paredes revestidas de peles de zebra , cenário em que Porter, ao piano, entretém seus convidados no filme.
Meia-noite em Paris repassa as muitas músicas em que Cole Porter homenageia Paris "I Love Paris" e "Cest Magnifique" entre elas e, de fato, o compositor escreveu um musical, Paris, para a cantora Irene Bordoni. Uma das canções do espetáculo era "Lets Do It", com versos provocativos como: "Nos baixios rasos os linguados fazem aquilo/ e os peixinhos dourados, na privacidade dos aquários".
Quando Gil se senta num café com Dalí e Man Ray, confidencia aos dois artistas seu choque por ter sido lançado de volta no tempo. Man Ray fica encantado com a idéia, mas Gil responde: isso é porque "você é um surrealista e eu sou um cara normal".
Dalí, interpretado por Adrien Brody, foi a Paris pela primeira vez em 1926, deixou crescer o bigode que se tornaria sua marca registrada e conheceu seu ídolo e colega espanhol, Picasso. Experimentando com diversas formas, Dalí se envolveu com um círculo de surrealistas de Montparnasse, cujos membros investigavam as profundezas freudianas de suas psiques em busca do que consideravam uma nova fronteira expressiva. Dalí encontrou sua futura mulher, Gala, que, nada conveniente, era casada com um poeta surrealista.
O pintor colaborou com Buñuel no curta vanguardista Um cão andaluz. Em Meia-noite em Paris, , Gil sugere a Buñuel que faça um filme sobre um jantar fracassado. Buñuel, claro, aceita a sugestão. O filme é O Anjo Exterminador, lançado em 1962.
Tradução de Christian Schwartz.