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"Não tenho nada contra essas bundinhas". O comentário sobre os versos "Peitinhos assaz, bundinhas assim", da música "As atrizes", é uma das primeiras frases que Chico Buarque diz, rindo, no documentário "Desconstrução" - contido no DVD que pode ser comprado junto com o novo CD do compositor, "Carioca". A fala, que entrelaça malícia e estética, é a cara do filme, um trabalho que, mais que explicar o álbum a partir de seu "making of", dribla mitificações e nos aproxima de Chico - o artista, genial, e o cara, doce e sacana. Um sujeito capaz de inventar uma história elaborada sobre um de seus "fornecedores de músicas", tal de Ahmed. E que, depois de compor uma letra perfeita para uma melodia acidentada do baixista Jorge Helder, pregar-lhe uma peça mostrando a música sem avisá-lo. O músico, emocionado, chora, ri, treme e pede calmante - tudo registrado.

Foi a partir da cena de Helder que o diretor Bruno Natal percebeu que tinha um documentário. Antes, ele circulava pelo estúdio com sua câmera digital, durante as gravações de "Carioca", captando imagens - é o primeiro registro desse porte dos bastidores de uma gravação de Chico - e pensando que tipo de edição poderia dar a elas.

- Conhecia Pedro Seiler (produtor executivo da Biscoito Fino) da época da faculdade. Quando soube que o disco do Chico ia sair pela gravadora, pedi para ele tentar que eu registrasse as gravações. Depois de um "não", insistimos e consegui um encontro com Vinicius França (produtor de Chico). Expliquei para ele o que queria fazer, ele falou: "venha à sextas". Fui sexta, segunda, terça, quarta, quinta... Mas ia gravando sem saber muito no que ia dar aquilo - lembra Natal, que aos 28 anos lança seu primeiro documentário (ele tem outro gravado, sobre o dub jamaicano, ainda em fase de montagem).

O episódio de Helder ajudou o diretor a formatar a idéia de "Desconstrução", amarrando cada música com pequenas situações. A parte sobre "As atrizes", a das bundinhas, mostra Chico enrolando a língua para conseguir gravar os versos finais da música. E rindo a cada erro. Em "Sempre", o foco está na inclusão do verso "Como um gato à sua dona". Chico percebe que sua equipe, no estúdio, não gosta da novidade. Ele tenta explicar, alguém nota o cacófato "suadona" e, na mesma hora, ele muda para "Como um gato aos pés da dona". Em "Ode aos ratos", Chico demonstra curiosidade com música eletrônica, perguntando o que faz um DJ - depois, Natal conta, ele ouviu um CD de DJ Dolores e gostou.

- Além dessas imagens, combinei com Chico de fazer uma pergunta por dia, e usei essas respostas para completar algumas lacunas. Por exemplo, atravessando todas as histórias das músicas, tem a questão do Chico Buarque deixando de ser escritor e virando músico de novo, uma transformação que ele mesmo descreve. Ele fala disso no início do filme e depois a idéia é retomada no fim - explica Natal.

Entre considerações artísticas, Chico faz graça com a cirurgia que sofreu para consertar o dedo torto, faz papel de avô com os netos correndo pelo estúdio, conta "travessuras" de seu parceiro Tom Jobim. E, com a mesma leveza, grava um disco.

A princípio, é difícil imaginar o grande nome da MPB entrar em cena abrindo uma porta saltando e dizendo "Hei!", com um sorriso olhando para a câmera. Mas Chico faz isso e a cena é totalmente coerente com o personagem que aparece em todo o documentário.

- Essa cena foi uma brincadeira. A câmera não estava pronta quando ele entrou no estúdio e eu perdi a imagem. Ele, então, voltou e entrou de novo, daquela forma - conta o diretor. - Chico é assim, sem afetação nenhuma. Aquilo que aparece no filme é o clima do estúdio.

Foram gravadas cerca de 45 horas, no total, e a edição era feita junto com as gravações, para que o filme ficasse pronto na mesma época que o CD. Algumas cenas que ficaram fora acabaram entrando nos extras, como a de Chico pregando uma peça no pessoal do estúdio. Prestes a gravar, começou a fazer um ruído com os dentes, próximo ao microfone. Quando os técnicos já estavam cansados de procurar a origem do barulho, Chico contou entre risos que ele era o responsável pelo "defeito".

O diretor assinou a edição junto com Rafael Mellin, premiado por filmes de surfe. Juntos, eles conseguiram achar o ritmo certo para o documentário - o ritmo de Chico, que fica claro na dificuldade do compositor para conseguir acessar sua caixa de e-mail. Ou na cena em que ele se enrola para tirar um casaco. Mellin insistia que Chico não ia aprovar esse trecho. Mas, de qualquer forma, eles tentaram. O resultado?

- Quando assistiu o documentário, ele riu na hora do casaco - lembra o diretor. - Também suspirou quando se viu com os netos. No fim disse: "Já?" - conta, sem esconder o orgulho. - Ele também mostrou-se impressionado com a capacidade da câmera digital para fazer imagens e áudio com aquela qualidade. Ela não fazia idéia de que isso era possível.

Sem a câmera na mão, o diretor presenciou também algumas cenas que ajudam a entender Chico. Uma delas numa pelada com o Politheama - o time de Chico, que, segundo a lenda repetida sempre pelo compositor, não perde nunca.

- Eles são bons mesmo - confirma Natal. - Mas assisti a um jogo em que eles perdiam de 9 a 6, o tempo acabou e o juiz mandou seguir. A partida só terminou quando estava 9 a 9.

Não deixa de ser uma prova de humildade. Afinal, Chico preferiu parar antes da virada.

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