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 | Ilustração: Osvalter Urbinati Filho
| Foto: Ilustração: Osvalter Urbinati Filho

Simplesmente único, como Pelé

James Shapiro tem se firmado como um dos mais peculiares comentadores de Shakespeare da atualidade – misto de acadêmico, conhecedor de literatura comparada e da história da literatura em língua inglesa, com "detetive literário", que junta pistas e reconstrói com rigor a cena em que atuou o bardo inglês.

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A Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) deste ano, em sua décima edição (de 4 a 8 de julho), vai levar Shakespeare ao palco de sua famosa Tenda dos Autores. Mas não para encená-lo naquele quase teatro de arena – o bardo inglês será, isso sim, alvo de um debate, prevê-se que dos mais acalorados, entre dois dos maiores especialistas do mundo em sua obra: Stephen Greenblatt, autor de Como Shakespeare Se Tornou Shakespeare (Companhia das Letras); e James Shapiro, de quem a editora curitibana Nossa Cultura acaba de lançar Quem Escreveu Shakespeare?. Os dois livros convergem numa pergunta crucial para a literatura moderna: como terá sido possível que um rapaz do interior, um novato no sofisticado mundo literário do final do Renascimento, viesse a se tornar o maior dramaturgo de todos os tempos e, para muitos, o autor a inaugurar a própria modernidade?

Biógrafos e estudiosos de Shakespeare (Greenblatt inclusive) tentaram, ao longo de mais de quatro séculos, fazer dos poucos limões deixados pelo bardo – escassos fatos documentados sobre sua vida e supostas pistas sobre a pessoa do autor na obra – uma limonada interpretativa, em que sobram especulações e persiste o mistério de como se produz um gênio. Até o dia em que alguém, especulação por especulação, resolveu se perguntar: mas e se não tivesse sido Shakespeare quem escreveu Shakespeare?

Em seu livro, James Shapiro – cujo objetivo declarado é entender como hipóteses como essa nascem e se propagam, mantendo ocupadas dezenas, centenas de mentes (algumas mais do que brilhantes) ao longo de séculos – passa em revista fatos e mitos da mais incrível teoria da conspiração a assombrar o mundo das letras e das artes: a tese de que William Shakespeare jamais existiu como autor (a pessoa física tem existência comprovada); teria sido apenas um "laranja" usado por algum nobre ou literato ilustre nos séculos 16 e 17, temeroso de que sua identidade verdadeira fosse associada ao meio teatral, na época tido como pouco respeitável.

Mais do que isso, os dois principais candidatos a autor da obra shakespeariana, e objetos de investigação aprofundada do livro, teriam agido às escondidas por temer represálias: tanto Francis Bacon, filósofo e fundador da ciência moderna, quanto Edward De Vere, o Conde de Oxford, seriam ligados demais ao establishment da época para arriscarem suas reputações, especialmente quando se olha para as peças ditas "históricas" de Shakespeare, muitas contendo ácidas críticas políticas à monarquia e seu entorno.

Shapiro, professor da Universidade de Columbia, assume o papel do detetive capaz de desmontar, com propriedade, uma teoria conspiratória na qual acreditaram e pela qual militaram não poucos nomes ilustres: Sigmund Freud, Henry James, Mark Twain, Orson Welles. E, para dar ao caso um gostinho a mais de thriller dos estudos shakespearianos, o autor conseguiu até mesmo descobrir que um dos mais importantes documentos a alimentar a chamada "controvérsia da autoria" – uma série de conferências de um erudito religioso, proferidas no início do século 19 – havia sido, o próprio, forjado depois da morte do palestrante. A cereja do bolo: no fim de contas, conforme Shapiro mostra em detalhes e com narrativa envolvente, as alegações em favor de autorias alternativas sempre foram pródigas em falsificações.

Bacon ou Oxford?

A primeira grande teoria derivada da hipótese de que Shakespeare não teria escrito a obra a ele atribuída aponta para o proeminente filósofo Francis Bacon (1561-1626). Autor brilhante, Bacon transitou por todos os gêneros textuais mais difundidos em seu tempo – menos a poesia e o teatro, o que bastou como indício inicial de que poderia estar por trás da assinatura de Shakespeare. Muitas supostas evidências de que, sim, na verdade Bacon seria autor de versos e peças (mas teria preferido o anonimato para preservar a reputação) foram reunidas a partir de meados do século 19.

É quando entra na história uma professora e intelectual americana, Delia Bacon (não há parentesco próximo, que se saiba), mente privilegiada de sua época que, desafiando o preconceito contra a condição de mulher e interiorana, brilhou a certa altura em Nova York, tornando-se amiga de políticos, artistas e cientistas como o inventor Samuel Morse. Delia acreditava que o desenvolvimento da ciência em outras áreas, como as comunicações de seu amigo Morse, precisava chegar também à "ciência literária" – e então decidiu que perseguiria sua grande teoria: Shakespeare não seria Shakespeare, mas Bacon, um segredo que ela imaginava, ainda sob influência morseana, inscrever-se em código na própria obra do bardo. Bastaria saber "decifrá-la".

A personagem Delia é longamente explorada no livro de Shapiro: ousada e cativante intelectualmente, foi uma mulher frustrada na vida amorosa que acabou se envolvendo num escândalo nacional pela suposição de que mantivera um romance com um rapaz dez anos mais novo – fatal, considerando-se o background religioso da moça, irmã de um autoritário pastor. Também por conflito com suas convicções religiosas, Delia teve uma promissora carreira como autora teatral igualmente frustrada. Acabou deprimida. Morreu jovem.

O segundo "suspeito" preferencial de ter se ocultado por trás do nome de Shakespeare foi personagem controverso e escandaloso de sua época (leia mais na página 3). Edward De Vere (1550-1604), o Conde de Oxford, pode ter sido um filho secreto da rainha Elizabeth I – e, mais absurdo, talvez também seu amante. É das trajetórias mais obscuras da era elisabetana, daí o personagem ter suscitado mais essa suspeita: a de que teria escrito o que se atribui a Shakespeare. O maior trunfo dos chamados oxfordianos, adeptos da teoria, é que Freud foi obcecado por ela, e Shapiro não economiza na descrição e esmiuçamento dessa, quem diria, obsessão freudiana (leia texto à página 3). Como ocorreu com Bacon, também aqui houve um primeiro divulgador da hipótese: J.T. Looney, de novo um personagem interessantíssimo – para se ter ideia, membro destacado que quase chegou a pastor de uma certa seita positivista em Oxford.

Shakespeare de Stratford

E quanto a Shakespeare, ele mesmo, o que se sabe sobre esse homem? Apenas aos poucos e com dificuldade foram sendo desencavadas, ao longo do tempo, as provas documentais de que, de fato, existiu um indivíduo de nome William Shakespeare, nascido e criado em Stratford-upon-Avon, pouco estudado embora filho de um político local (mas luveiro de profissão), e que a certa altura da vida foi ser ator e, mais tarde, autor teatral em Londres. Terminou seus dias muito rico, de volta à cidade natal, onde emprestava dinheiro para manter o patrimônio em dia – ou seja, na vida real (ao menos no final dela), Shakespeare viveu de renda, como credor de terceiros.

Se olharmos para as realizações artísticas desse homem, há diversas pistas que ligam – por assim dizer – o nome à pessoa. Shapiro se debruça também sobre os vestígios que ficaram da passagem desse senhor pelo mundo das artes na Inglaterra dos séculos 16 e 17 – e daí para a História. Nas peças e nos poemas, dizem os defensores do bardo, não há nada que o homem de Stratford – mesmo sem ter sido alguém "viajado" ou "erudito" – não pudesse ter subtraído à trajetória de um alguém, até certo ponto, comum. Mas, e essa é a essência do argumento de Shapiro (leia entrevista à página 2), o erro está justamente em condicionar uma coisa à outra, a escrita à vida: "Aqueles que alimentam a controvérsia da autoria precisam se basear nessa leitura autobiográfica, já que não há uma única evidência documental que ligue a obra aos setentas ou mais candidatos a autor", explica o estudioso, lançando o ônus da prova a quem acusa o Shakespeare de Stratford de ser uma fraude. "Espero que meu livro encoraje as pessoas a se afastarem desse tipo de especulação infrutífera."

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