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Fonseca: ventriloquismo desgastado e perceptível | João Wainer/Folhapress
Fonseca: ventriloquismo desgastado e perceptível| Foto: João Wainer/Folhapress

Contos

Amálgama

Rubem Fonseca. Nova Fronteira, 160 págs., R$ 39,90.

Um autor com cinquenta anos de carreira e cinco Jabutis (além dos prêmios internacionais Manuel Rojas, Juan Rulfo e Camões) é de intimidar qualquer leitor. Sobretudo o leitor eventual ou de primeira viagem, a quem a ideia de ler um livro talvez ocorra entre a sala de embarque e o saguão do aeroporto. Não é esse o caso de Rubem Fonseca, e não é esse o caso de Amálgama, seu mais recente livro de contos (e alguns poemas).

O leitor habitual logo reconhece nos trinta e quatro textos de Amálgama as características (obsessões, tiques, taras, como queiram) do universo ficcional de R.F.: seus neuróticos incuráveis, matadores profissionais, serial killers refinados, anões e desdentados. São tantas as recorrências (ou autorreferências) que a sensação de déjà vu chega a ser inevitável. Já o leitor recém-chegado (porém habituado aos programas policiais e filmes tarantinescos) talvez se pergunte entre uma página e outra: ah, tá, mas e daí?

Daí que o Brasil de hoje é incomparavelmente mais violento que o de 50 anos atrás. Daí que a brutalidade, antes capaz de épater (impressionar) a censura, é hoje servida em nosso patê informativo diário. Espécie de profecia consumada, a fórmula do "feroz realismo" de R.F. já não poderia ter a mesma contundência. A realidade, no mais, não admite qualificativos, e um realismo sempre mais feroz perde-se como real ante uma realidade que o ultrapassa. Isso em parte explica por que os textos de Amálgama resultam tão desiguais.

Reciclagem

Uma das louvadas virtudes do "estilo sem estilo" de R. F. é a capacidade de reciclar clichês e mesclar registros por meio de narradores toscos e pretensiosos. Amálgama traz exemplos dessa técnica, tais como "horrenda pungência", "cicatrizes do amor" e outras pérolas de breguice literaresca. Mas quando um adolescente com ensino primário se acusa de "megalomania" e fala em "abjetas ações e indignidades", para em seguida ter de explicar ao leitor como veio a conhecer tais palavras; quando os narradores recorrem repetidamente aos mesmos cacoetes, como o de reproduzir definições de dicionário, fica impossível não perceber certo ventriloquismo desgastado.

Amálgama até chega a abordar aspectos desse desgaste. No conto "Best-seller", um escritor fracassado pergunta a si mesmo: "O que eu podia inventar para contar no meu livro? Uma mãe paralítica e débil mental? Um filho autista ou com síndrome de Down? Um filho que nasce sem perna e sem braço?". De fato, Amálgama traz dois contos em que um bebê nasce sem perna e sem braço. Irônico, R.F. denuncia o fetiche do realismo brutal que ajudou a fomentar, como se reconhecesse o desgaste da fórmula e desse modo a reciclasse.

Mas será a banalidade do mal uma fórmula arruinada, incapaz de contornar o cinismo e a cumplicidade?

Não necessariamente. Embora suscetível a altos e baixos, o amoralismo ético e o primitivismo estético de R.F. demonstram fôlego na recusa a todo sociologismo e psicologismo, os dois horizontes máximos da imaginação moral brasileira. O conto "O Filho", por exemplo, retrata não apenas as manchetes policiais mas o ethos por trás de certas noções atuais de direitos humanos. Já "O Ciclista" debocha do primarismo de nossas indignações morais, enquanto "Isto É o Que Você Deve Fazer" constata a capacidade brasileira de conciliar crueldade e fascínio pelas convenções verbais. "Crianças e Velhos" vai no sentido contrário, ensaiando um movimento para além da sordidez naturalista, como a de reconhecer que um lírio é tão natural quanto um percevejo. Onipresente, o mal em R.F. resta imune ao coitadismo e acima de toda explicação.

É claro que, comprometido com o registro das superfícies, nas quais atuam os motores da loucura, do dinheiro e do sexo, o autor não pode oferecer nenhuma alternativa ou saída, nenhuma visão abrangente e totalizante. Está preso entre o naturalismo dos impulsos e os abismos infernais, como seu leitor entre a sala de embarque e o saguão do aeroporto.

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