• Carregando...

Há um ano morria na Grécia, atropelado por uma moto ao atravessar uma rua em Atenas, o cineasta grego Theo Angelopoulos. Multipremiado por uma seleta filmografia de 15 longas, Angelopoulos era o principal diretor de seu país, conquistando a Palma de Ouro em Cannes, em 1988, por "A Eternidade e um Dia". Como homenagem póstuma ao realizador, a Lume Filmes coloca no mercado o DVD de seu terceiro longa, "A Viagem dos Comediantes", épico com quase quatro horas de duração que resume os principais acontecimentos da história da Grécia entre 1939 e 1952, relacionando-os à jornada de uma trupe de atores por várias épocas, desde a ditadura fascista de Metáxas, nos anos 1930, à adesão do país à Organização do Tratado do Atlântico Norte em 1952.

O filme começa justamente nesse ano. Um acordeonista abre a cortina de um teatro para anunciar a peça que a trupe vai representar, um "idílio moral em cinco atos" chamado "Golfo, a Pastora", de Spiridon Peresiadis (1864-1918). Trama que lembra vagamente Shakespeare (o fim do casal é semelhante ao de "Romeu e Julieta"), "Golfo" é um resumo da história que Angelopoulos vai contar, cruzando dramas individuais dos atores - histórias de traições e embates ideológicos - com as transformações da Grécia durante a guerra, passando de uma ditadura fascista à Ocupação alemã, da Guerra Civil à intervenção da Inglaterra e EUA.

Não é só ao "idílio moral" de Peresiadis, muito popular na Grécia no século 19, que Angelopoulos recorre como representação metafórica de um país em ruínas, no qual a traição foi moeda corrente durante o regime fascista de Metáxas, cujo homem forte, o marechal Alexandros Papágos (1883-1955), é evocado logo no primeiro plano-sequência do filme. A trupe de comediantes acaba de colocar os pés na estação ferroviária de Aegion, em 1952, a tempo de testemunhar o avanço político do militar, preso pelos alemães nos anos 1940 e disposto a modernizar a Grécia a qualquer custo - e com a ajuda dos americanos.

É sobre a impossibilidade de o país viver a democracia - regime inventado pelos gregos - que trata "A Viagem dos Comediantes", usando ainda como referência a antiga tragédia da casa de Atreu, o rei de Argos que, traído pela mulher, mata os filhos de Érope com Tiestes.

Angelopoulos usaria as mesmas referências mitológicas de crime e traição em outros filmes (Orestes, por exemplo, em "Paisagem na Neblina"). Em "A Viagem dos Comediantes", ele se inspira em Ésquilo para fazer de Agamenon um refugiado da Ásia Menor e de Egisto um desprezível informante dos nazistas. Orestes, seu herói, escolhe o lado dos esquerdistas (Angelopoulos era marxista) e é preso como guerrilheiro em 1949, sendo morto na prisão dois anos depois. Sobrevive a ele seu amigo mais íntimo, Pylades, também um comunista exilado por Metáxas que, sob tortura, é forçado a denunciar seus companheiros.

Custa a acreditar que Angelopoulos tenha realizado o filme em 1974, em pleno regime dos coronéis, mesmo usando personagens intercambiáveis retirados da mitologia clássica para explicar três décadas da conturbada história grega. O colapso moral da Grécia contemporânea tem suas raízes justamente nesses mitos, parece dizer o cineasta - e essa certamente é uma boa lição que os gregos esqueceram. Um país que sofreu com a invasão turca, a ocupação alemã, a guerra civil e sucessivos golpes deveria ter aprendido sobre os males da intervenção do poder estrangeiro nas decisões políticas e a vocação caimita de alguns gregos vendidos à corrupção. Já na sequência inicial, uma carreata espalha panfletos da campanha política de Papágos, exortando o povo a apoiar o militar - e o marechal, que comandou as forças governamentais durante a guerra civil, acabaria com quase 50% das cadeiras do Parlamento em 1952, fazendo crescer ainda mais a oposição.

Ao morrer, Angelopoulos concluiu a segunda parte de sua trilogia sobre as raízes da Grécia no século 20, "A Poeira do Tempo", retomando questões abordadas em "A Viagem dos Comediantes" - e prolongando a jornada por outros países além da Grécia, para entender o que aconteceu com o mundo do século 20, dividido por fronteiras, guerras nacionalistas e pela intolerância. Faz falta um cineasta como Angelopoulos, autor de um cinema de reflexão, feito com rigor formal, inteligência e sensibilidade, qualidades cada vez mais raras na tela.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]