O DJ paraplégico Marquim, vivido por ele mesmo, e Shokito, que teve sua perna amputada, habitam uma cidade sitiada| Foto: Fotos: Divulgação

Destaques

Confira alguns pontos altos da programação de hoje do festival:

Português premiado

Um dos destaques da Mostra Competitiva deste domingo é o documentário português E Agora, Lembra-me?, de Joaquim Pinto, premiado pelo júri da Associação Brasileira dos Críticos de Cinema (Abraccine), na edição deste ano do Cine PE, realizado em Recife e Olinda. O filme também venceu o Prêmio Especial do Júri no Festival de Locarno, na Suíça. Portador do vírus HIV há duas décadas, o diretor testa drogas clandestinas durante um ano e relata sua experiência cinematograficamente. A sessão acontece às 16h45, no Espaço Itaú 2.

Verdes anos

Ainda na competitiva de longas-metragens, será exibido às 19 horas, no Espaço Itaú 3, o tailandês Mary Is Happy, Mary Is Happy, de Nawapol Thamrongrattanarit, conta a história de uma garota (Patcha Poonpiriya) que está no último ano do ensino médio, e vê sua vida se transformar à medida em que sua formatura se aproxima.

Estreia japonesa

Às 21 horas, no Espaço Itaú 1, também em competição, terá sua primeira exibição no festival o drama japonês Forma, longa de estreia de Ayumi Sakamoto. Premiado pela associação internacional de críticos Fipresci no Festival de Berlim deste ano, o longa tem como personagem central a estudante universitária Ayako (Nagisa Umeno), que por alguma razão começa a tratar sua melhor amiga da faculdade, Yuraki (Emiko Matsuoka), de maneira estranha.

CARREGANDO :)

Programe-se

Branco Sai, Preto Fica

Espaço Itaú de Cinema. Hoje, às 21h15 (Sala 3). Amanhã, às 21h30 (Sala 1). Classificação indicativa: 10 anos.

Adirley Queiroz, cineasta.

Em uma noite quente de 1986, possivelmente no mês de março, uma multidão dançava e se divertia em um baile black em Ceilândia, Região Administrativa do Distrito Federal, situada a 40 quilômetros de Brasília. Filhos da classe trabalhadora, muitos deles negros, descendentes diretos de homens e mulheres que ajudaram a erguer Brasília, receberam a visita indesejada da polícia militar, que, em uma ação de violência deliberada, partiu para cima da rapaziada com ferocidade.

Publicidade

Não foi nem a primeira nem a última vez que isso ocorreu, mas aquela madrugada nunca foi esquecida, e se transformou, com o decorrer dos anos, em uma lenda compartilhada pelos habitantes da localidade.

Branco Sai, Preto Fica, longa-metragem do cineasta Adirley Queiroz, que estreia neste domingo na Mostra Competitiva do festival Olhar de Cinema, nasceu no papel com a proposta de ser um documentário mais convencional, que resgataria os fatos daquela noite, a partir de depoimentos de personagens que não apenas estavam presentes no baile, mas que sofreram ferimentos graves e traumas emocionais.

Em entrevista à Gazeta do Povo, concedida por telefone, Queiroz contou que, ao conversar com os possíveis personagens, sobretudo com o DJ e hoje ator Marquim, que ficou paraplégico em decorrência de ferimentos sofridos naquela noite de 1986, percebeu que não havia entre eles o interesse de relembrar e falar sobre tudo o que viveram. Entusiasmaram-se, contudo, em participar de um projeto que, de forma indireta, mas não menos contundente, abordasse o ocorrido, que, segundo o diretor, já faz parte do inconsciente coletivo da cidade satélite.

Aborto territorial

Para melhor compreender o que se tornou Branco Sai, Preto Fica, um híbrido de documentário e ficção, premiado na Mostra de Tiradentes deste ano, é importante, antes, saber um pouco das origens de Ceilândia, que nasceu no início da década de 1970, como resultado de uma operação de remanejamento populacional, chamada por Queiroz de "aborto territorial".

Publicidade

Com o término das obras de construção de Brasília, muitos dos homens e mulheres que nela trabalharam permaneceram no Distrito Federal, mas, ao enfrentar dificuldades para encontrar empregos e moradia, aos poucos foram ocupando áreas próximas ao aeroporto, onde brotaram indesejadas favelas, que acabavam sendo a primeira paisagem ao alcance dos olhos de quem desembarcasse na visionária capital do país.

A solução acabou sendo transferir em torno de 80 mil famílias para uma região localizada a cerca de 40 quilômetros, dentro do que foi batizado de Campanha de Erradicação das Invasões, que é o marco fundador de Ceilândia, que já nasceu de um processo sistematizado de exclusão populacional.

Violência policial

Os bailes blacks, que misturavam ritmos negros norte-americanos, como o soul e o funk, à música brasileira de raízes afro, surgem em Ceilândia espontaneamente no início dos anos 80, atraindo um número crescente de pessoas, em grande parte adolescentes e jovens que se mudaram na primeira infância para a região com seus pais e avós. Marquim, que protagoniza o filme de Queiroz, é um deles.

Hoje aos 44 anos, ele tinha 18, 19 anos quando, naquela noite de 1986, sofreu graves agressões da tropa de choque da polícia militar, que, ao chegar aos bailes, sob o pretexto de impedir a ação de traficantes de drogas, e também de conter a violência que, de fato, por vezes eclodia entre os participantes, tinham, como uma de suas frases de intimidação, "Branco sai, preto fica", título do longa. Sabiam que a maioria dos frequentadores era negra. "Era uma ação fascista, opressora, típica daqueles tempos de pós-ditadura", conta Queiroz, que também foi a muitas dessas festas populares.

Publicidade

No filme, a ação, em vez de se passar em 1986, é transposta para 2076, noventa anos mais tarde. "A história de Brasília é pontuada por essas datas redondas: os 50 anos em cinco, mote do governo Juscelino Kubitschek, a inauguração em 1960, os 50 anos da cidade, celebrados em 2010", explica o diretor. No filme, Ceilândia tem, neste futuro distópico, a sua condição de gueto oficializada: para entrar na Capital Federal, é exigido dos moradores da periferia um passaporte.

Queiroz conta que, embora o substrato de Branco Sai, Preto Fica sejam os acontecimentos de 1986, a histórias verdadeiras de Marquim e de outro personagem, Sartana (vivido por Shokito), um homem que perdeu a perna no conflito, são "fabuladas", adentrando o território da ficção científica, em uma ambientação influenciada, segundo ele, por Blade Runner – O Caçador de Andoides, de Ridley Scott, porém muito mais próxima da realidade do que, talvez, ele conseguisse chegar com um documentário de perfil mais convencional.