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Romance: Um Chinês de Bicicleta. Ariel Magnus. Tradução de Marcelo Barbão. Bertrand Brasil, 280 págs., R$ 34 | Reprodução
Romance: Um Chinês de Bicicleta. Ariel Magnus. Tradução de Marcelo Barbão. Bertrand Brasil, 280 págs., R$ 34| Foto: Reprodução

Logo na primeira página, como uma advertência cautelosa, somos confrontados com as palavras do poeta e arqueólogo francês Victor Segalen (1878-1919): "Sim, este é o princípio da viagem. Ou seja, o princípio do real". Só rondamos o real quando nos lançamos na ação. Parados e indolentes, afundamos na triste realidade, que não passa de rotina e tédio. Nenhum dos dois está presente na vida do técnico em informática Ramiro Valestra, de 25 anos, protagonista de Um Chinês de Bicicleta, romance do argentino Ariel Magnus (Bertrand Brasil, tradução de Marcelo Barbão). Pelo menos a partir do momento em que ele é sequestrado pelo incendiário chinês Li Qin Zhong, também conhecido como "Fosforinho".

Apesar do choque, ou por ele, Ramiro admira seu raptor. "Ou está louco, ou é um mestre, este chinês, suponho que as duas coisas e será por isso que eu o achei simpático desde o princípio." Ao ser preso após um incêndio, Li deixa para trás uma pistola, uma garrafa de gasolina, uma caixa de fósforos da marca "Los Tres Patitos", uma pedra do tamanho de um punho, uma carteira e uma bicicleta. Passando por acaso pela rua, sempre com seus fones de ouvido que o protegem da brutalidade do real, Ramiro se torna uma testemunha do crime.

Sempre que o interrogam, Li responde que tem um chip na cabeça, de onde recebe ordens diretas do presidente da China. Passou uma temporada no manicômio, onde diagnosticaram "um leve retardo mental". Livre novamente, ele resolve sequestrar Ramiro. Em um estranho cativeiro, no qual goza de intensa liberdade, Ramiro se sente preso, ainda assim, a seu algoz. Não consegue entender o que Li dele espera. Juntos, perdem-se pelos becos do bairro chinês de Buenos Aires, frequentam um prostíbulo, depois um karaokê, um mosteiro, um estádio de futebol. Através de Li, o protagonista conhece personagens fascinantes, como o ator chinês Lito Ming, que na verdade não é chinês, mas japonês. Um certo Chen que, apesar das roupas de homem, não é um homem, mas um dos "castrati" que circulam pela noite portenha. E o esquisito Dr. Woo, um coreano que se diz o inventor da "manupuntura, uma acupuntura reduzida à mão".

Prisioneiro de uma aventura alheia, Ramiro Valestra – como um leitor apaixonado – passa a encarar seu sequestrador como um personagem literário, que o ajuda a ler o mundo de uma maneira que desconhecia. Aos poucos, ele compreende que os ocidentais estragam tudo o que herdam do Oriente. Apaixona-se por Yintai, com sua maquiagem carregada, cujo beijo se assemelha a "um olhar para o abismo". No leito, ela lhe ensina a técnica do "orgasmo imóvel", durante o qual os últimos picos do êxtase paralisam até a respiração. Pelas ruas do bairro chinês, como um Marco Polo contemporâneo, Ramiro conhece pintores que não pintam originais e nem sabem onde eles estão: limitam-se a copiar suas próprias cópias. Entende, aos poucos, que, trazido para o Ocidente, o Oriente se torna um mundo descartável e oco. Só um cenário.

Quando dorme com Yintai, Ramiro tem sonhos estranhos, nos quais o Rio Amarelo é vermelho; Gengis Khan não é mongol, mas japonês; e Mao Tsé-Tung se torna famoso por sua "revolução gutural" – na verdade só um efeito de suas dificuldades com a pronúncia do erre. Acordado, tenta se apoiar nas reflexões do ambíguo Chen, que lhe assegura que a maldade chinesa, e o mito de que eles fazem tudo sempre ao contrário, "é uma invenção dos jornalistas". Aos poucos reúne evidências que talvez apontem que Li não é um louco, mas sim um funcionário da máfia chinesa. É Lito, o ator, quem lhe passa, por fim, um provérbio chinês que o ajuda a aceitar a aventura em que está metido. Diz: "Se você tem um problema que não tem solução, pare de se preocupar. E, se tem solução, pare de se preocupar também".

Mais à frente, Ramiro é defrontado com um pensamento atribuído a Lao Tsé que também o ajuda a seguir caminho: "Aquele que busca a erudição deve acrescentar conhecimento todo dia. Aquele que busca o Tao deve reduzir conhecimento todo dia". A ideia parece perfeita para ele que, quanto mais se envolve com Li e seus comparsas, quanto mais acumula informações sobre os chineses de Buenos Aires, menos os compreende.

Um dia, Ramiro acompanha o pequeno Sushi, filho de Yintai, ao zoológico. Depois de visitarem a jaula do urso panda, o menino diz que deseja ver um dragão. Não querendo decepcionar o garoto, Ramiro o leva à jaula do hipopótamo e lhe explica que, quando envelhecem, os dragões perdem as asas e engordam. "Eles se transformam em hipopótamos", afirma. As explicações arbitrárias, as cópias baratas e as falsificações definem o mundo no qual Ramiro se vê retido. Ainda assim, sabe que precisa nelas acreditar, ou não conseguirá sobreviver. Entende que, mesmo incrédulo, não pode desprezar as crenças. A Yintai, que lhe diz não acreditar nas tradições, Ramiro retruca que ela apenas "acredita que não acredita". Não crer é, também, uma crença.

Num ritmo acelerado e com muitas tiradas de humor, o romance de Ariel Magnus traça um surpreendente retrato do choque cultural entre Ocidente e Oriente. É, ainda, uma espécie de lenda a respeito do inevitável desencontro entre um chinês e um argentino. Esse desencontro, porém, em vez de afastá-los, os aproxima. Ambos compreendem que, feitas as contas, tanto chineses como argentinos vivem em um mundo "fake", no qual as identidades há muito se incendiaram. "O único lugar na China onde se consegue o que vocês chamam de comida chinesa é no restaurante dos hotéis para turistas", Li o faz ver. Também o bairro chinês de Buenos Aires, ele entende, não passa de "um circo chinês", no qual se encena – como em um picadeiro – uma China inexistente.

Observando seu sequestrador, o enigmático Li, fica cada vez mais difícil para Ramiro distinguir as diferenças entre um mestre e um louco. É novamente Lao Tsé, o autor do Tao, quem lhe traz um caminho para pensar: "Quanto mais distante se viaja, menos se sabe". A ideia da aventura se afasta, assim, da suposição de conhecimento. Aventurar-se é, no fim das contas, entregar-se ao desconhecido e, provavelmente, nele se perder.

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