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Fogueira das vaidades

 | Ellen DeGeneres/Reprodução
(Foto: Ellen DeGeneres/Reprodução)
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A vida em sociedade é um espelho no qual tomamos consciência de nossa existência. Não há como fugir da constatação de que somos agentes que julgam os semelhantes e observadores atentos daquilo que os outros consideram como apropriado em nós. Esta formação da moralidade, quando o sujeito, irrepetível e único, se entrelaça ao universal, está intrinsecamente relacionada à conformidade com a opinião pública. "Todos os membros de uma sociedade humana precisam cada um do auxílio dos outros e estão, da mesma maneira, expostos a danos mútuos. A sociedade floresce e é feliz onde o auxílio necessário é fornecido reciprocamente pelo amor, gratidão, amizade e estima", diz Smith.

Até mesmo em momentos populares de solidariedade, como nas recentes campanhas da ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica), dos célebres baldes d’água e gelo na cabeça, é possível enxergar reverberações de paixão excessiva por si mesmo. Quando o indivíduo flexiona suas ações à esfera pública, logo, plano de compartilhamento moral, para que seja, assim, percebido como causador de caridade, estão ali expostos conjuntos poderosos de narcisismo, mesmo que repletos de boas intenções, o que, em última instância crítica, nunca saberemos se existem mesmo. Não custa citar a assiduidade de empresários no noticiário de ações de caridade em datas festivas, fenômeno muito mais visível nas sociedades capitalistas em que os milionários também são culturalmente filantropos, caso dos Estados Unidos. Dar muito a quem tem pouco é sinônimo de poder, ainda mais se continuamos com muito.

Sobre a transformação de tudo em instrumento de vaidade, A Sociedade do Espetáculo, do escritor francês Guy Debord (1931-1994), publicado em 1967, alega que onde reinam as condições de produção em massa, tudo se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos, o sentido se esvai na imensa fumaça da representação – neste aspecto, é certeiro o título de livro recente de Paula Sibilia, ensaísta e pesquisadora argentina radicada no Brasil: Show do Eu.

Esta migração da vaidade do mundo concreto para a plataforma maciça de expressão virtual, lembra, em certa medida, A Aventura de Um Fotógrafo, de Italo Calvino, onde um homem se apaixona por uma mulher e busca a reprodução fotográfica perfeita deste amor – "A fotografia só tem sentido se esgotar todas as imagens possíveis", "Talvez a verdadeira fotografia total seja um monte de fragmentos de imagens privadas". No conto, o protagonista acaba descobrindo, ao seu modo, que apenas fotografar a fotografia esgotaria a possibilidade da exposição completa do que sente.

Do medo pré-histórico às novas categorias de exibição da intimidade – o Doutor Pasavento, do catalão Enrique Vila-Matas, aquele personagem que quer desaparecer por completo, cada vez mais se tornará impossível em um mundo regulado em autoimagem –, as aparências se mostram como cada vez mais decisivas no processo social e este controle e obsessão pela autoimagem não deixa de ser notório em nosso espírito do tempo. Mentimos, sim, como sempre, mas nunca tivemos tanta possibilidade de regular socialmente nossa voz. É como afirma sombriamente Debord: "A especialização das imagens do mundo acaba numa imagem autonomizada, onde o mentiroso mente a si próprio".

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