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G Ideias

Um braço estendido e um clique

Dos paleolíticos homens das cavernas aos pintores do século 17, fenômeno da autorrepresentação vive hoje seu ápice com as populares selfies

 | Osvalter Urbinati
(Foto: Osvalter Urbinati)
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O pintor holandês Rembrandt em três autorretratos – de 1634 (acima), 1630 (abaixo, à esq.) e 1660 (abaixo, à dir.) |

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O pintor holandês Rembrandt em três autorretratos – de 1634 (acima), 1630 (abaixo, à esq.) e 1660 (abaixo, à dir.)

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Pode faltar água, pode faltar feijão, pode faltar o Paraná Clube no Brasileirão – ou o Atlético e o Coritiba na Série B, dependendo do coração. Pode faltar amor. Mas não pode faltar selfie. Redução disseminada da expressão self-portrait photograph, correspondente, em português, ao insípido termo autorretrato, que, obviamente, não pegou, uma selfie é uma selfie, portanto, acima de tudo: ela pode surgir num enterro, após os estragos de uma tempestade, no espelho da balada pouco movimentada, enquanto o trânsito emperra e reclamamos do governo, no almoço com as tias que falam mal de nossa forma física ou em um simulacro de felicidade após o fim de um relacionamento. Basta, à maneira da fórmula um papel e uma caneta, do compositor Pedro Luís, um celular e um dispositivo fotográfico.

Não que a moda das selfies seja semanticamente recente. No quesito autorrepresentação, os paleolíticos homens das cavernas, há mais de 40 mil anos, já se desenhavam diante de predadores em situações cotidianas – mas é possível especular que este ato correspondesse mais ao extravasamento de um sentimento de medo ou angústia do que ao espírito de futebol no bar com os amigos. No século 17, o pintor holandês Rembrandt (1606-1669), já com noções de profundidade mais apuradas, fez quase uma centena de autorretratos – a sua figura é vista em pelo menos 30 gravuras, 12 desenhos e mais 40 pinturas. É Rembrandt no seu ateliê, Rembrandt na velhice, Rembrandt com pelica, Autorretrato com Cabelos Desgrenhados – mas, como bem lembrou o quadrinista Allan Sieber dia desses, naquela época as selfies demoravam mais para ficarem prontas. E não custa ressaltar que os quadros eram executados pelo pintor para ele mesmo, a fim de estudo da passagem dos tempos, embora também remetessem à extrapolação de seu curioso viés teatral. Em seu estúdio, o holandês, dado à dramaturgia ou à breguice, como preferir, gostava que seus alunos recitassem trechos de peças melodramáticas.

De fato, a fotografia analógica, a partir do século 19, substituiu o papel direto do pintor como representante exclusivo do real e foi a sintaxe sem palavras do mundo exterior, o olhar fotográfico como suposta transposição da realidade, quando não o próprio ideal da realidade objetiva. Porém, da primeira fotografia registrada e permanente, feita pelo inventor francês Joseph-Nicepóre Niépce (1765-1833), num distante verão de 1826, aos rolos de filme da Kodak com 36 poses, nunca foi muito barato sair por aí fotografando com uma câmara escura. Por muito tempo, o exercício de transplantação da realidade aos álbuns dizia, inclusive, do potencial financeiro de cada família. Infelizmente, os entraves monetários nunca impediram que poucos viventes escapassem da vergonha alheia de ter suas fotos quando criança, geralmente em estado de nudez ou de sujeira, mostradas pela mãe ou avó ao novato cônjuge.

Boom

A explosão da fotografia como item de bolso começou a partir dos anos 2000, com o boom das telefonias móveis e suas gerações quase frenéticas de novas tecnologias e capacidades. O início de milênio foi altamente imagético e afundou o mercado tradicional de fotografia, fazendo do filme fotográfico, tal qual a sina do vinil, um item de colecionadores e seguidores específicos. (A nostalgia, como dizia o escritor espanhol De La Serna, sempre foi a nevralgia das lembranças.)

Se, em um primeiro momento, a progressão fílmica remaneja o mercado e transforma o hábito fotográfico em acessório banal a um toque de distância, a coisa toda cresceu mesmo com a entrada das redes sociais na extensão diária do indivíduo. No Brasil, isso acontece principalmente a partir de 2010 – não faltam defensores do antigo e saudoso Orkut a dizer que em suas épocas não se existia tanta autoexposição. Redes como o Facebook, o Tumblr, o Flickr e o Instagram trouxeram à selfie uma extensão antropologicamente inimaginável: ano passado, o tradicional Dicionário Oxford elegeu-a como a palavra do ano. O mundo passa a ser significado por uma nova estética particular: um braço estendido, um rosto autocomplacente e um clique.

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