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Rodrigues: adúlteras e suicidas com a dignidade dos personagens de Flaubert | Divulgação
Rodrigues: adúlteras e suicidas com a dignidade dos personagens de Flaubert| Foto: Divulgação

São Paulo - "A Vida Como Ela É" era o título de uma famosa coluna que Nelson Rodrigues manteve entre 1951 e 1961 no jornal Última Hora. Seis vezes por semana, o escritor improvisava em torno de poucos temas. Casamento, sexo, morte – em especial o adultério, presente em quase todos os textos. Algumas coletâneas já foram lançadas com seletas dessas crônicas cariocas. Mas há material de sobra, pois Nelson produziu quase dois mil desses contos ao longo dos dez anos em que a coluna circulou.

Sai agora mais uma delas – Não Tenho Culpa Que a Vida Seja Como Ela É –, composta por textos antes inéditos sob a forma de livro. Entre as 39 crônicas, duas são de Suzana Flag, pseudônimo usado quando escrevia folhetins.

A própria história da coluna é curiosa. Nelson foi convidado a criá-la pelo dono do jornal, Samuel Wainer. A ideia de Wainer era recolher fatos da vida real, pinçados do noticiário policial, e valorizá-los com um to­­que ficcional. Logo o autor se liberou das amarras da realidade e deu asas à imaginação, fértil, como se sabe. Quando o diretor do jornal percebeu, já era tarde.

A coluna passara a ser o maior sucesso da imprensa carioca e Nelson conquistara um precioso espaço de experimentação para suas ideias. Podia, com comodidade, medir o pulso de sua repercussão pública em um meio de divulgação de massa.

Na redação da Última Hora, situada na Avenida Presidente Vargas, surgia mais um pequeno capítulo de sua extensa (e intensa) reflexão sobre a mentalidade da classe média e da pequena burguesia carioca. Um dia, em momento de autoavaliação, Nelson concluiu que sua obra não passava de uma longa meditação sobre o amor e a morte.

Policial e poético

O primeiro texto é justamente aquele que dá título à coletânea –"Não Tenho Culpa Que a Vida Seja Como Ela É". Nele, explica as circunstâncias em que foi convidado por Wainer a criar a coluna. A ideia geral ia ao encontro de to­­da uma concepção do jor­­na­­lista sobre seu ofício. Wai­­ner queria dar ao fato policial "uma categoria, digamos assim, poética, dramática". Desse modo, um atropelamento, um suicídio e um adul­­tério seriam mais do que "fa­­tos", objetivamente falando.

Aliás, para Nelson, a objetividade não passava de uma forma entre outras da idiotia. Interessava-lhe, mais que o fato, o sentido trágico, dramático, cômico do que acontecia. À sua maneira, ele ironizava a doutrina da objetividade, introduzida no jornalismo brasileiro naqueles anos e copiada de forma acrítica da matriz norte-americana. Dizia que se as mortes de Anna Karenina e Emma Bovary fossem descritas por um jornalista brasileiro, sairiam assim: "Por motivos ignorados, pôs termo aos seus dias Anna Karenina, branca, casada, de tantos anos, residente à rua tal... Quanto a Emma Bovary, teria ‘ingerido’ violento tóxico, sendo o cadáver remetido ao Instituto Médico Legal, etc., etc."

Nelson Rodrigues queria para suas adúlteras e suicidas a dignidade de personagens saídos da pena de um Tolstoi ou de um Flaubert, não a fria objetividade do jargão jornalístico.

Como grande moralista que era, Nelson não podia deixar de viver atento à contradição: mais o ser humano buscava o prazer do sexo e a realização no amor, mais exposto estava à degradação e ao sofrimento. Era tudo isso que exprimia essa coluna em aparência monotemática, mas de riqueza extraordinária em suas variações. Não faltaram críticas ao tom desses textos, desabridos, crus, atentos ao detalhe sórdido.

Com eles, Nelson solidificou sua fama de "tarado", obcecado pe­­lo sexo, depravado e corruptor da ju­­ventude. Ele se defendia com sim­­plicidade dizendo que a virtude não pode vir da ignorância e sim do conhecimento do pecado e do livre-arbítrio para cometê-lo ou não.

Sabia do preconceito, mas ainda se espantava quando o reconheciam na rua e lhe diziam: "Seu Nelson, o senhor vai me desculpar, mas não deixo a minha noiva ler a sua coluna." Não raro, esse tipo de observação servia como ponto de partida para um novo texto sobre a vida como ela era, e não como deveria ser.

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Serviço

Não Tenho Culpa Que a Vida Seja Como Ela É, de Nelson Rodrigues. Agir, 264 págs., R$ 44,90.

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