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Pede-me a Gazeta do Povo um reflexão sobre os 20 anos da morte de Paulo Leminski e ponho-me a me lembrar não só de sua pessoa e obra, mas a considerar a imagem mítica que veio se construindo em torno dele.

A primeira vez que o vi, foi em Belo Horizonte, 1963, quando inesperadamente ele apareceu na Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, que eu e outros organizávamos. Ele havia me escrito perguntando como participar, eu havia lhe respondido que a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) infelizmente só tinha verba para uns poucos convidados com obra mais conhecida (Haroldo de Campos, Augusto e Campos, Décio Pignatari, Benedito Nunes, Luis Costa Lima etc.).

Um dia estamos no hotel e aparece lá aquele rapaz de 19 anos dizendo que viera de ônibus de Curitiba e se podia assistir aos debates. Expliquei aos colegas, que não o conheciam, e todos achamos que se alguém se desloca de tão longe, claro, merecia atenção.

Estive com ele em lançamentos de livros e discos no Rio, em mesa de bares em Curitiba, e quando ele se mostrava juvenilmente siderado pelos concretistas eu advertia, que naquele movimento não havia espaço para mais ninguém, ou ele criava sua linguagem própria ou ia ser fagocitado. Felizmente ele tomou o caminho da diferença e partiu através da reinvenção brasileira do haikai, para pequenos, ferinos, ágeis, magistrais poemas.

Lembro-me de um seminário em Curitiba, nos anos 70, tempo de ditadura, em que ele adentrou o salão da Biblioteca Pública com uma ou outra pessoa erguendo cartazes contra a ditadura do soneto. Acontece que no palco (onde eu estava) as pessoas também eram até contra o soneto da ditadura...

Quando aos 31 anos, publicou Catatau, eu era crítico da Veja e essa revista estava interessada em literatura e não apenas em best sellers. Abrindo caminho para os novos (Roberto Drum­­mond, Sérgio Sant’Anna, Luiz Vi­­le­­la, Raimundo Carrero, Adélia Prado, Antonio Torres, João An­­tonio), fiz uma resenha sobre Ca­­tatau onde reconhecia seus méritos. Livro dedicado aos concretistas e feito na esteira do Finnegans Wake, dele, eu dizia: "Tem-se a impressão de que desejou começar onde Joyce acabou. E isto talvez não seja possível. Cada autor deve começar no seu princípio e não no fim do outro". Terminava, dizendo: "Li­­vro sem centro, apesar de circular, Catatau é um moto contínuo linguístico. As pa­­lavras caminham numa procura órfica. Co­­mo a sua personagem – o coronel Cristoff Artys­chewsky, o autor também está bêbado – de palavras. Daí se perguntar no final: ‘Bêbado, quem compreenderá?’".

Quando vejo exporem pedaços de papel e maços de cigarro escritos por Leminski, como se fossem "santas relíquias", lembro-me que quando da morte de Joseph Beuys, uma galeria expôs partes de suas unhas, pedaços de barbantes e folhas de jornal largados no seu ateliê. Como a Igreja diante de qualquer osso de um santo ou pedaço da cruz, toda seita tem frenesi diante de "santas relíquias". Num gesto de pudor a família de Leminski expressou desejo de que não se publique o que ele não publicou.

Se nem Machado de Assis escapou da mitificação (foi até cúmplice), recentemente, para retornarmos à literatura dos anos 70, isto ocorreu com outra "marginal" – Ana Cristina César. (Escla­reço: não só a conheci desde me­­nina, sou meio parente dela, fui eu quem a levou à PUC etc.; portanto, sou insuspeito). Ela teve um fim patético, como Leminski. Em torno dela, aos moldes ultrarromânticos, que misturam biografia & obra, ergueu-se uma certa necrofilia. Por coincidência, nesses dias li a biografia de Clarice Lispector – escritora excepcional, genial sob alguns aspectos – num belo livro que Benjamim Moser lançou nos Estados Unidos. O livro é uma obra de peso sob muitos aspectos. Mas lia o livro e pensava na outra Clarice Lispec­­tor, que tão bem conheci. Neste livro há uma sublime mitificação judaica!

Vejo notícias das merecidas homenagens marcando os 20 anos da morte de Leminski e temo que sua obra continue sendo menos estudada que sua figura mítica ampliada pela imaginação dos pósteros e pelo ímpeto que temos de construir mitos. A antropologia, aliás, está devendo aos estudos literários uma boa interpretação de como os "marginais" de ontem foram entronizados no centro do sistema. E aí há que se analisar o que é mística e antropologicamente "martirológio" e o que é "literatura".

Ambígua e esperta é essa cultura que transforma iconoclastas em santos, canoniza a seita dos hereges, transforma a contracultura em cultura. De paradoxo em paradoxo chega-se ao oxímoro paralisante.

Na superposição e na troca de sinais entre "periferia" e "centro" ocorre o fenômeno de purificação do sujo, de angelização do mal, de entronização do excluído. O estigma passa a ser condição para a salvação. Tanto os Beatles quando os Rolling Stones receberam distinções do Palácio de Buckingham. O marginal que condenou o consumo é consumido e chega ao céu do capitalismo e da cultura midiática.

Nosso sistema é diabolicamente inteligente.

E a sociedade do espetáculo tem seus sortilégios.

* Affonso Romano de Sant’Anna é poeta, ensaísta, crítico de arte e ex-presidente da Fundação Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. É autor de Que País É Este? e Como Se Faz Literatura.

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