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Alan Pauls, autor de “O Passado”. | Ricardo B. Labastier/Divulgação
Alan Pauls, autor de “O Passado”.| Foto: Ricardo B. Labastier/Divulgação

Se contabilizada pelo número de títulos ao longo das mais de três décadas de carreira do escritor, a obra ficcional do argentino Alan Pauls parece modesta: sete romances apenas – quase sempre novelas, na verdade – desde 1984.

Essa mesma obra ganha proporções épicas, porém, nos pouco mais de dez anos desde a publicação de “O Passado” (480 páginas de um esmiuçamento psicológico obsessivo dos relacionamentos amorosos do protagonista, Rímini, com uma trama paralela entregue à crítica de arte mais delirante) e da trilogia “História do Pranto”, “História do Cabelo” e “História do Dinheiro” (outras 400 e tantas páginas, na soma dos três volumes), que investigam nada menos que 40 anos de história argentina.

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Junte-se a isso o que o escritor brasileiro Reinaldo Moraes definiu como “alucinante estilo parentético” de uma prosa “torrencial e contínua, [...], viva e incandescente [...], cujo projeto parece ser o de esgotar cada instante, cada coisa, cada ser” – marca de toda a obra recente de Pauls; ou os capítulos de até 50 páginas em letras miúdas de “O Passado”, verdadeiros tours de force; ou ainda a produção ensaística do autor argentino – outros seis títulos em que, com a mesma precisão de detalhes, disseca ora as obras canônicas (e antípodas) dos conterrâneos Jorge Luis Borges e Manuel Puig, ora a arte de escrever ou, magistralmente, a de ir à praia (em “A Vida Descalço”); tudo somado, enfim, o que se tem é um escritor monumental.

E pop também: depois de militar na crítica de cinema, e filho de um conhecido produtor e ator, Axel Pauls (na adaptação de Hector Babenco para “O Passado”, é ele o pai do protagonista, por sua vez interpretado por Gael García Bernal), o próprio Pauls, cujos irmãos e irmã são também todos atores, andou aparecendo em meia dúzia de filmes nos últimos anos, entre os quais o ótimo “Medianeras”, de 2011. A caminho de Curitiba para a mesa inaugural do Litercultura, festival literário que tem seu terceiro e principal “capítulo” marcado para este fim de semana, Alan Pauls antecipou por e-mail um pouco do que vem dizer a seus leitores curitibanos.

Entre o segundo e o terceiro volumes da trilogia “Pranto”, “Cabelo”, “Dinheiro”, sua editora brasileira, a Cosac Naify, lançou aqui um ensaio intitulado “A Vida Descalço”, no qual você mistura lembranças e observação pessoal com referências pop e eruditas para evocar a experiência de ir à praia. O leitor brasileiro talvez tenha ficado confuso: não estaria lendo, ali, outro romance calcado na memória, como os dois da trilogia até então lançados no Brasil? Onde fica o limite entre ensaio e ficção na sua obra?

Gosto de pensar que “o leitor brasileiro que me acompanha” estará acostumado, a esta altura, com as liberdades que tomo quando escrevo, e apreciará essa promiscuidade entre gêneros como outros leitores apreciam romances que são “romances”, ensaios que são “ensaios” etc. Além disso, de Proust a Borges, passando por Sebald ou Barthes, toda literatura que me interessa funciona sempre nas fronteiras entre registros, de modo a expandi-las ou a borrá-las. Não me incomodaria, portanto, que se lesse “A Vida Descalço” como um parente perdido da trilogia das “Histórias”. Na verdade, o livro poderia muito bem se chamar “História da Praia”.

E se você deliberadamente se sentasse para escrever um livro de memórias, que diferença haveria?

Na capa viria escrito: “História de Mim Mesmo – Memórias”! E eu (o autor) provavelmente estaria morto. (Gêneros obscenos como o das memórias só são toleráveis quando póstumos.)

Voltando à trilogia: como lhe ocorreram esses três, digamos, objetos de estudo – o pranto, o cabelo e o dinheiro – a partir dos quais falar da história recente da Argentina? Há uma instigação deliberada à dúvida nesses títulos (“História do...”) – que, antes de lidos os livros propriamente ditos, bem poderiam ser confundidos com os de uma história cultural em vários tomos, escrita por um historiador dedicado à corrente da micro-história?

Para mim são, de fato, livros de história, na medida em que reconstroem uma sensibilidade histórica particular, constituída, ao mesmo tempo, de acontecimentos públicos e misérias privadas, de grandes eventos políticos e de aventuras minúsculas da intimidade. Encontrei esses três “fósseis” (pranto, cabelo, dinheiro) enquanto buscava uma forma lateral, menor, não oficial de adentrar uma década – os anos 70 na Argentina – que já foi muito escrita, pensada e reconstruída, e que não parece oferecer novas possibilidades de leitura. Tomo o pranto, o cabelo e o dinheiro como vestígios de uma “civilização” que se perdeu, mas que antes disso ficou impressa, congelada nesses três elementos. E a posteriori percebi que eles têm um aspecto forte em comum: são três coisas que se tende a perder. Nesse sentido, os três romances são ficções acerca da experiência da perda.

Num papo bastante descontraído e revelador com o também escritor argentino Rodrigo Fresán, disponível no YouTube, à provocação dele sobre a predominância do fantástico na ficção escrita por argentinos, você reconhece uma certa “irrupção, muito brutal, do social na literatura argentina dos últimos dez anos” – o ponto de virada teria sido a crise de 2001/2002 no país. A Argentina alguma vez produziu ficção realista?

A irrupção do social não necessariamente aparece em registro realista. Muitas vezes leva a ficções um pouco absurdas e fantásticas, como nos casos de alguns romances de [Cesar] Aira (“La Villa”, por exemplo) ou Washington Cucurto. Dito isso, penso que o realismo é o único registro literário que nunca acaba de morrer e renascer, um pouco como a família, no campo das instituições humanas. Quantas vezes se decretou a morte do realismo? E, no entanto, nada se provou tão elástico, com tamanha capacidade de absorção e metamorfose.

Na mesma conversa com Fresán, você declara certa aversão à ideia de que o conto seja a forma por excelência da ficção argentina – embora seus livros tendam, no geral, à brevidade, mais novelas do que romances. Com uma exceção, claro, e por isso pergunto: como foi a concepção de “O Passado”? Algo a ver com esse impulso de fugir ao peso da tradição contística escrevendo o grande romance da sua geração?

Não, não queria fugir de nada. Comecei “O Passado” achando que começava mais um romance dos meus, curto e rápido, e ao longo do caminho percebi que estava crescendo de um jeito um pouco monstruoso, e, em vez de interromper ou controlar o processo, decidi mergulhar totalmente nele. O tempo de escrita foi longo: “vivi” o romance como nunca antes (nem depois), envelheci enquanto o escrevia, e essa foi uma das experiências mais estimulantes do projeto. Minha rejeição à tradição contística argentina tem mais a ver com os valores literários que se pretende exaltar nessa tradição: a eficiência, a economia, a destreza, o bem fazer etc.

É conhecida sua relação com o cinema – visível tanto nas suas intervenções críticas quanto, talvez principalmente, na frequência com que filmes e idas ao cinema aparecem na sua ficção e nos seus ensaios. Como (se é que) o filme de Hector Babenco baseado em “O Passado” fez você repensar essa relação com a narrativa na tela grande? (E, com o perdão do lugar-comum e da indiscrição: gostou do filme?)

Tenho uma relação problemática com o filme de Babenco: gosto do tom de tragédia ridícula que tem e da imprecisão temporal em que transcorre, e me desagradam a fidelidade com que o filme segue o “argumento” (que para mim é o menos importante no romance) e seu desinteresse por zonas mais mentais, mais extremas [do livro] (que são o mais importante para mim). Mas, nisso, acredito não ser nada original: todos os escritores se queixam da mesma coisa quando seus livros são adaptados ao cinema.

Entre muitos insights valiosos do teu ensaio “El Factor Borges” – Borges como “fraudador” admirável, o “pudor borgeano” como “teoria de nacionalidade, política linguística, estratégia literária”, a erudição do mestre como uma mistura complexa da vida mental das bibliotecas, perigosos labirintos, com a “fala argentina” mais enraizada e popular – você nos oferece a seguinte observação: “Traduzir um livro, para Borges, é garantir-lhe, não a mesquinhez de uma sobrevida, mas o risco, aí incluída a insensatez de um destino aventureiro”. Qual sua relação particular com a ideia de tradução?

Tenho no mais alto conceito a prática da tradução e os tradutores, cuja extravagância é, em geral, muito mais genuína e encantadora do que aquela que fingem muitos escritores. Eu mesmo traduzo com bastante regularidade, e sei o que é esse inferno de obsessão e fúria a que dedicam suas vidas, muitas vezes em troca de um salário miserável. Borges via, para além disso, outra questão: o papel crucial que a tradução desempenha na transmissão do significado, e, portanto, no modo sensato ou insensato, razoável ou totalmente imaginário, pelo qual determinada literatura se insere em contextos culturais estranhos. Aqui, as boas traduções são tão decisivas quanto as más, e um impostor que se faz passar por bilíngue pode ser tão importante quanto um bilíngue legítimo. Os tradutores estão mais para contrabandistas e traficantes do que para “intérpretes”.

E, na prática, como percebe a experiência de ter sua obra traduzida em outros países? Sente-se mal-compreendido, às vezes (mesmo que seus tradutores sejam competentes)?

Não consigo ter ideia de como me leem ou leram a partir do texto de uma tradução: é uma questão mais ampla e complexa, que envolve todo um tecido cultural, valores ideológicos, instituições etc. Os mal-entendidos, de todo modo, não me assustam. São muitas vezes mais estimulantes e produtivos do que a boa compreensão. E são inevitáveis. Tentar controlar isso é ridículo.

Por fim: Borges é inescapável para um escritor argentino? Ou você e os da sua geração – para não falar dos mais jovens – já foram capazes de se livrar dessa imensa “sombra”?

Não houve essa necessidade de se livrar de Borges porque, para a gente, Borges (ao contrário do que aconteceu com uma ou duas gerações anteriores, que precisaram combatê-lo para existir como escritores) nunca se impôs. Mais do que um pai (ou uma sombra), Borges era uma espécie de tio esquisitão, ao mesmo tempo antiquado e perspicaz, de um infantilismo enciclopédico, capaz como poucos de entrar em sintonia com as novas gerações. Ninguém da minha geração jamais tentou escrever como Borges. Sabíamos que era uma causa perdida. Mas todos aprendemos com Borges o melhor que se pode aprender com outro escritor: aprendemos a ler (literatura, mas também o mundo inteiro).

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