Mural retratando a modelo Teresa Oman em Berlim, fotografado em 2014: jovens do mundo todo continuam sonhando com a vida noturna da capital alemã.| Foto: Thomas Peter/Reuters

Olhando de um de seus terraços, não se vê em Berlim cúpulas de 2 mil anos como as de Roma, nem os famosos telhados de zinco de Paris ou os cânions de esculturas arquitetônicas do centro de Nova York.

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Não há nada na paisagem urbana da capital alemã que seja empolgante ou impactante.

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O escritor e ensaísta Peter Schneider a define como a “Cinderela” das capitais europeias para dizer que não é a beleza que faz da cidade a mais admirada, descolada e criativa do velho continente. Mas, se não é isso, o que é?

Nem mesmo o nazismo conseguiu controlar o submundo berlinense

A cultura da era dos cabarés “contaminou” a sociedade berlinense e chocava visitantes estrangeiros.

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Em seu livro mais recente, “Berlim, Agora”, Schneider , que é professor de história na Universidade de Harvard, estima que parte do apelo da cidade é sua história de transformações aceleradas, seu passado de liberdades e atrocidades na mesma medida.

Transformações

Contando só o século 20, Berlim passou de capital da Prússia a metrópole mundial na década de 1920, lar da boemia intelectual mais ousada de então e berço da diversidade e permissividade sexual.

Pouco tempo depois, foi a capital do Terceiro Reich, a cidade onde foram planejados os mais graves crimes do século.

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Após a devastação da guerra, ressurgiu como a “cidade do muro”, dividindo simbolicamente o mundo por 28 anos.

Até ser reunificada e logo se transformar numa “babel” de art istas criativos, trabalhadores do mundo inteiro e notívagos nas duas últimas décadas. E, certamente, a grande cidade sexualmente mais liberal do Ocidente.

Estas manifestações [teatros de rua, shows de variedades, cabarés, cafés, bares e clubes noturnos] na época eram consideradas arte inferior, mas sem esta cultura da diversão e do protesto como base, teriam sido impensáveis os agora famosos desbravadores do modernismo como Bertold Brecht e Max Beckmann

Peter Schneider,  autor de “Berlim, Agora”.

Cultura dos cabarés

No ensaio “O Amor (e o Sexo) em Berlim”, Schneider conta que esse apanágio vem de longe, e que há cerca de cem anos a situação política mundial era bem diferente, mas a noite berlinense, não.

Segundo o autor, a lendária Berlin sauvage da década de 1920 foi formada a partir de uma cultura de massa altamente politizada de teatros de rua, shows de variedades, cabarés, cafés, bares e clubes noturnos.

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“Estas manifestações na época eram consideradas arte inferior, mas sem esta cultura da diversão e do protesto como base, teriam sido impensáveis os agora famosos desbravadores do modernismo como Bertold Brecht e Max Beckmann”, escreve.

Os anos 1920 foram de desemprego em massa, crescimento violento da desigualdade social e da inflação, que levaram o mundo ao colapso financeiro mundial em 1929 – e a Alemanha à barbárie nazista logo depois.

Foi uma época, no entanto, iluminada em vários aspectos ligados à emancipação das liberdades individuais e dos costumes. Uma época de conquistas que reverberam até hoje, como as músicas de Kurt Weil e Marlene Dietrich.

HEMINGWAY

O escritor Ernest Hemingway, que visitou Berlim no início dos anos 20, afirmou em um artigo que a capital alemã era “uma cidade vulgar, feia, sobriamente dissoluta”. Paris, onde o autor vivia, se diferenciava, a seu ver, pela “vida noturna mais altamente civilizada e divertida, enquanto Berlim era sórdida, desesperada e depravada”.

Diversidade

Foi na noite da “Berlim imoral” que o outing (o ato de “sair do armário”, em português; a exposição pública da condição homossexual) foi consolidado.

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Mas a cidade já era, desde o século anterior, um núcleo político de resistência à intolerância sexual.

Em 1897, o intelectual Magnus Hirschfeld criou o Comitê Científico Humanitário para combater com atos e pesquisas científicas a “hegemonia da norma heterossexual”.

O grupo teve influência suficiente para convencer a polícia de Berlim a não fazer blitze nos cafés frequentados por gays.

Numa época de padrões de moralidade duplos, era interessante para as autoridades ignorar a homossexualidade pelo simples fato de que homens muito poderosos também eram gays. Assim, não chega a surpreender que o outing tenha nascido décadas depois. A permissividade já estava no ar.

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Isso, e um momento histórico, político e econômico conjugados ajudaram a cidade a se tornar a meca da diversidade sexual, a cidade sem tabus, que reunia numa mesma noite gays, aristocratas, banqueiros, intelectuais e principiantes dispostos a tudo para entrar no showbiz – em locais onde, por preços muito mais baratos que os de outras capitais da Europa, se podiam ver espetáculos ousados e de grande qualidade artística.

“Berlim, Agora – A Cidade Depois do Muro”

Peter Schneider. Tradução de Rita Vinagre. Rocco, 345 pp.,
R$ 39. Ensaio.

Berlim passou a ser procurada por homens e mulheres de todas as partes da Europa e do mundo, e o grande ímã para esses turistas era a prostituição em massa.

“A cidade se tornou um eldorado para turistas viciados em sexo”, segundo Schneider, em um mundo que parecia a fim de romper barreiras morais e religiosas.

Força

Essa cultura conseguiu superar o nazismo e o período da divisão leste-oeste do Muro. Assim, não é por acaso que, mesmo com as exceções dos movimentos neonazistas e outras truculências conservadoras, em Berlim as convenções sexuais seguem sendo outras.

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E que jovens do mundo todo sonhem com suas festas, feitas em boates que ocupam galpões, bunkers e túneis que só abrem de madrugada, e onde se pode ficar um fim de semana inteiro dançando e “amando” à moda berlinense.