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Falar que um livro trata do "vazio existencial" pode arrancar bocejos do leitor de hoje. Porém, nos anos 60, dilemas desse tipo não eram tão difundidos. Nos EUA, falar que a busca por satisfação material era um mergulho certo na infelicidade soava pouco patriótico. De qualquer forma, como sugeriu Jonathan Franzen, autor do premiado romance As Correções, escritores devem sempre explorar as qualidades de uma situação ruim e, quando tudo vai bem (ao menos na aparência), ressaltar os aspectos podres.

Além das revoluções culturais e tecnológicas que colocariam a década de 60 na história – entre elas, os passos de Neil Armstrong na Lua e os de Jimi Hendrix no palco do Woodstock –, aquela foi uma época em que a inocência americana teve de se confrontar com o assassinato do presidente John F. Kennedy. Nesse cenário, John Cheever escreveu Acerto de Contas (Tradução de Sergio Viotti. Arx, 208 págs., R$ 29,90), recém-lançado no Brasil.

Em 67, Cheever (1912 – 1982) já era consagrado, havia ganho prêmios importantes, inclusive o National Book Award por seu romance de estréia, A Crônica dos Wapshot (1957). Ninguém melhor do que um autor premiado para bagunçar o estilo americano de vida, criando uma história sobre o tal "vazio existencial" inerente à sociedade da época e, por conseqüência, à de hoje.

O químico Eliot Nailles leva uma vida tranqüila em Bullet Park, na região suburbana de Nova Iorque. Ele tem uma vida feliz, casado com a mulher que adora, pai de um filho que ama. Nada acontece. A monotonia é tamanha que, quando o filho decide não sair da cama porque se sente triste ("depressão" ainda era algo novo), a família fica aterrorizada.

A narrativa se divide em duas. Depois dos Nailles, entra Paul Hammer em cena. Ele se mudou há pouco para Bullet Park. Aos poucos, se sabe que ele teve uma infância complicada, pai e mãe ausentes, boa quantia de dinheiro herdada e disposição de viajar o mundo. Em uma rara visita à mãe, a tentativa de diálogo se parece mais com um delírio – clima que pontua todo o romance. No final, a mãe revela um de seus desejos mais íntimos: viver em um lugar como Bullet Park e promover uma crucificação na porta da Igreja de Cristo. "Nada menos do que uma crucificação acordaria o mundo", disse a mãe.

Ao longo do texto, o registro de Cheever oscila entre a comédia e o suspense. A parte em que decide destruir a televisão – porque não consegue desgrudar o filho dela – é hilária. Parece um melodrama, com o pai cambaleante carregando o aparelho nos braços, disposto a destrui-lo no jardim em meio a uma tempestade. O filho de joelhos, chorando e implorando para que desista da idéia. A mãe defendendo o filho, pedindo para ele não olhar a cena. Cômico e também trágico.

O título em português, assim como as informações da edição nacional podem passar uma idéia equivocada do conteúdo. O delírio da mãe sobre crucificação é assimilado perigosamente por Paul Hammer, mas isso acontece a 20 páginas do final e não é, de forma alguma, o enredo principal. "O que Eliot nem imagina é que sua vida sofrerá uma aterrorizante guinada quando surgir em cena o enigmático Paul Hammer, homem sem passado, mas com um futuro certo: ele pretende se tornar produtor e algoz de uma crucificação real", diz o texto da contracapa. A vida de Nailles não sofre reviravolta alguma, muito menos uma "aterrorizante". Sem estragar nada, dá para dizer que o final sugere exatamente o oposto de uma guinada. Hammer não é enigmático e sim desconhecido – aos olhos dos outros personagens. Já o leitor tem amplo acesso ao seu passado e a idéia da crucificação, de novo, é um delírio.

O título Acerto de Contas sugere uma história de perseguição e vingança que não é, nem de longe, o mote de Cheever. Nesta, como em outras obras, o foco é mais no ambiente do que nas pessoas. Bullet Park é o título original porque a protagonista do livro, enfim, é a cidade. Só assim tudo faz sentido. Ela amarra a narrativa, que é de fato "minuciosa" e "tensa". "Horripilante", nunca.

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