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"Sempre houve uma tradição autoritária no Brasil, uma enorme dificuldade em conviver com o outro, que se tiver ideias contrárias, ‘não representa nada’."

Marco Antônio Villa, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal de São Carlos (SP).

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"O Brasil não tem tradição de dissonância"

Há um clima de ódio instaurado na vida política do ­Brasil, que vem se agravando ao longo dos últimos anos em decorrência do embate de forças entre o PT e seu principal opositor, o PSDB. A constatação é do filósofo Renato Janine Ribeiro, professor-titular da cadeira de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo (USP), em entrevista concedida à Gazeta do Povo

Confira a entrevista completa

Em julho passado, o jornalista William Waack, editor-chefe e âncora do Jornal da Globo, foi várias vezes interrompido por vaias e protestos durante uma mesa que ele tentava mediar na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). O tema eram as manifestações de junho, e o fato de Waack representar, indiretamente, um grande grupo de co­mu­ni­cação, fez dele alvo de hostilidade por parte do público pre­sente. No fim de outu­bro, cerca de 30 estu­dantes interrom­pe­ram duas mesas na Festa Literá­ria Inter­nacional de Ca­choeira (Flica), na Bahia. O protesto pedia o cance­lamento de de­bates com o so­ciólogo Demé­trio Mag­noli e o filó­sofo Luiz Felipe Pondé, colu­nistas da Folha de S. Paulo. Também no mês passado, o 1.º Fórum de Filosofia e Ciência das Origens, que aconteceria na Uni­versidade Estadual de Campinas (Uni­camp) foi cance­lado na vés­pera, a pedido de pro­fes­sores da própria instituição. O motivo: os convidados eram no­mes ligados ao "criacionismo cien­tífico", que nega a Teoria da Evolução de Charles Darwin. Nesta semana, o Caderno G Ideias discute essa crescente indisposição para o diálogo e o debate, em favor de posicionamentos mais radicais, que preferem calar o opositor a ouvi-lo.

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Marco Antônio Villa, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal de São Carlos (SP) diz que a intolerância intelectual no Brasil vem se acentuando desde as manifestações do último mês de junho e tendem a se acirrar em 2014, ano de eleição presidencial. Para ele, essa intransigência é decorrência, sobretudo, da inexistência de um debate político consistente no ­país. "O brasileiro não gosta de política, que a considera um assunto chato, que não o encanta. Não há aqui uma sociedade politizada. O nível de consciência é muito pobre."

A cada legislação, diz Villa, se elegem políticos mais desprovidos de boas ideias, inconsistentes. Os partidos se diluíram, perderam a ideologia, e agem em benefício de seus próprios interesses, enquanto os sindicatos, que já tiveram um papel importante na vida brasileira, se tornaram braços do Estado, desde a eleição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003.

A visão do historiador da vida acadêmica brasileira é ainda mais nefasta. "Há um acirramento no meio acadêmico, porque a ‘intelectualidade chapa-branca’ tem medo de perder o que conquistou nos últimos 12 anos."

Para Villa, o debate intelectual arrefeceu no Brasil a partir da redemocratização, em meados dos anos 80, e segue quase inerte até hoje, nestas primeiras décadas do século 21. "Não temos mais debate nenhum. A universidade pública inexiste. Perdeu-se a capacidade crítica e forma-se muito mal. Há teses de doutorado ilegíveis, a produção científica nas áreas das Ciências Humanas hoje é pífia e inconsistente."

O mais grave, na visão do historiador, é que já não há mais nas universidades espaço para o contraditório. "É impossível estabelecer um diálogo inteligente de ideias. O controle está nas mãos de grupelhos e não se consegue trabalhar com as diferenças."

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Villa ressalta, contudo, que essa indisposição ao diálogo não é algo novo. Pelo contrário. "Sempre houve uma tradição autoritária no Brasil, uma enorme dificuldade em conviver com o outro, que se tiver ideias contrárias, ‘não representa nada’."

Embates

O historiador ressalta que já houve, no passado, um debate político intenso no ­país em alguns momentos. Lembra que, no fim do século 19, o jornalista e escritor Euclides da Cunha defendeu fervorosamente na imprensa o fim da monarquia e o ideário republicano, enquanto que, nos anos 1920, a Primeira República sofreu forte questionamento na imprensa, até a Revolução de 30, que levou ao poder Getúlio Vargas e, por consequência, seu regime ditatorial. Nos anos 50, o debate em torno do entreguismo e do nacionalismo, materializado na campanha pela nacionalização do petróleo, foi outra discussão que ganhou âmbito nacional por meio da imprensa, assim como a implantação das comunidades de base, nos anos 60, durante o governo de João Goulart, um dos pivôs do Golpe de 1964.

Entre as discussões intelectuais públicas brasileiras, Villa cita o embate virulento entre os críticos José Verissimo e Silvio Romero, autores de histórias da literatura brasileira contrapostas, e que trocaram farpas em público no fim do século 19. Outro confronto histórico ocorreu entre o escritor José de Alencar, autor de O Guarani, e o jurista e diplomata Joaquim Nabuco nas páginas do jornal O Globo , em 1875.

Villa defende a ideia de que, no plano político, a redemocratização do país teria, em certa medida, fracassado, já que a população não se tornou muito mais politizada e disposta a debater os problemas nacionais. "Algum êxito, talvez, tenha sido alcançado no plano econômico." O historiador completa, afirmando que hoje o clima de animosidade é tão forte, que forças opositoras não conseguem mais sequer sentar à mesma mesa para discutir.

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Na ditadura do eu

O recrudescimento da intolerância está relacionado ao esvaziamento e à perda das utopias a partir da década de 1960, processo que teria culminado nos anos 90, quando o paradigma liberal de uma sociedade regida por fatores econômicos e mercantilista se impuseram, passando a ter papel central em boa parte do mundo, reforçando um modo de pensamento individualista. "Valores como o respeito à diversidade, o humanismo e a luta pela desigualdade, pregados pelo socialismo, foram se perdendo, em nome do individualismo extremado", disse à reportagem da Gazeta do Povo César Bueno de Lima, sociólogo, professor do curso de Ciências Sociais da PUCPR e integrante do Núcleo de Direitos Humanos da instituição.

Os meios de comunicação de massa, segundo ele, incluindo agora as próprias redes sociais, substituíram a política, que deixou de ser um território para o debate, e passou a ser o meio pelo qual diferentes grupos fazem valer seus interesses de forma muito pragmática.

As causas coletivas que visam ao bem comum, segundo ele, teriam cedido lugar à cultura do eu. Nessa ordem, que vem se consolidando desde então, o público é sinônimo de decadência e o privado é sempre priorizado. A intolerância, dentro das universidades, inclusive, seria a radicalização desse pensamento que não contempla o diálogo como forma de resolução de problemas. Pelo contrário.

A estratégia passou a ser descredenciar o outro, aquele que se opõe ao que eu penso. A ordem hoje seria a da imposição de um ideário que satisfaz o anseio de indivíduos e de seus iguais, nem que para isso seja necessário causar a morte de quem discorda das minhas ideias. Essa "morte" pode ser simbólica, por meio da censura, do impedimento da expressão desse outro, ou literal, em casos mais radicais.

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Individualismo

"Vivemos a ditadura do eu, em que o indivíduo está autorizado a fazer tudo em defesa dos seus próprios interesses. Nem que para isso ele tenha de esvaziar o discurso do outro, com o qual está em discordância, e até de calá-lo."

O intolerante, assinala o professor, é aquele que defende a pena de morte e não defende os direitos humanos, e sim os direitos dos humanos que pensam como ele. "Há uma recusa de entender e absolver, impingindo dor e sofrimento, dentro de um paradigma da vingança."

Essa postura, diz Bueno de Lima, atinge também o meio acadêmico, que deveria ser um templo do saber, espaço democrático para o debate e o intercâmbio de ideias, mas acaba por reproduzir todos esses vícios, o que se mostra até mais grave, levando-se em consideração sua vocação à universalidade. "Há hoje uma imensa dificuldade em saber ouvir. Poucos se dispõem a se abrir a outras possibilidades, para além daquilo que acreditam e defendem."

"Atualmente, a educação não necessariamente torna as pessoas melhores. Poucos se perguntam para que se está educando. Há uma ignorância política muito grande, Educa-se, muitas vezes, para o medo", finaliza o professor.

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