Doris Lessing: narradora da experiência feminina com ceticismo, ardor e poder visionário| Foto: Kieran Doherty/Files/Reuters

Estante

Saiba mais sobre os principais livros de Doris Lessing lançados no Brasil:

O Carnê Dourado (1962) - Record, fora de catálogo.

Principal romance de Lessing, traz a história de uma escritora que relembra os principais momentos de sua vida.

Debaixo da Minha Pele (1994) - Tradução de Beth Vieira. Companhia das Letras, 472 págs. R$ 63.

O primeiro volume da autobiografia da escritora retrata seus 30 primeiros anos.

Amor de Novo (1996) - Tradução de José Rubens Siqueira. Companhia das Letras, 368 págs., R$ 54.

Aos 65 anos, uma mulher se apaixona por dois homens e reflete sobre o amor e o desejo.

Alfred e Emily (2008) - Tradução de Heloísa Jahn e Beth Vieira. Companhia das Letras, 272 págs., R$ 43.

Lessing retrata a vida de seus pais.

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Em outubro de 2007, Doris Lessing saiu para um passeio pelo Hampstead Heath Park, em Londres. Naquele dia, trivial até então, ela também havia levado o filho Peter ao médico. Quando voltou para casa, no bairro londrino de West Hampstead, onde viveu por 25 anos, encontrou uma multidão de fotógrafos e repórteres na calçada: a Academia Sueca acabara de anunciar que Lessing, então com 88 anos, era a vencedora do Prêmio Nobel de Literatura. "Ó, Deus!", disse, em choque, quando se deu conta de que havia desbancado o americano Philip Roth, favorito ao galardão naquele ano. Ela foi a vencedora mais velha a receber a distinção (e a 11.ª mulher) e não perdeu a piada, declarando, à época: "Tenho 88 anos, e eles não podem dar o prêmio a uma pessoa morta. Então, acho que pensaram que era melhor me dar agora, antes que eu batesse as botas".

Ela tinha razão, foi mesmo melhor. No último domingo, aos 94 anos, Lessing morreu enquanto dormia em sua casa, "tranquilamente", segundo seu agente. Deixou uma obra vasta, com mais de 50 livros e muita admiração entre marxistas, anticolonialistas, ativistas antiapartheid e feministas, para os quais foi e sempre será uma grande referência.

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Premiada

Apesar de seu espanto com o Nobel, os prêmios foram frequentes na trajetória da escritora, que nasceu na antiga Pérsia (hoje Irã), cresceu na Rodésia (atual Zimbábue) e se mudou para Londres aos 30 anos. Lessing ganhou, entre outros, o Prêmio Príncipe das Astúrias, em 2001, e foi finalista do Booker Prize quatro vezes, desde os anos 1970 até 2005, ano de sua última indicação. Quando o governo da Inglaterra lhe ofereceu o título de Dama do Império Britânico, em 1999, Lessing recusou — "já não há nenhum império", disse.

Em 1962, quando publicou seu título mais famoso, O Carnê Dourado, viu a obra ser aclamada como "uma bíblia feminista", embora ela própria tenha dito que, ao escrevê-la, nunca havia lhe ocorrido a ideia de fazer uma ode ao feminismo, que, segundo Lessing, é "uma visão reducionista da relação entre homens e mulheres". Ainda assim, no anúncio do Nobel, o título voltou a ser citado como parte de um "punhado de livros que formou a visão do século 20 sobre a relação homem-mulher". A Academia Sueca a definiu como uma "epicista da experiência feminina, que, com ceticismo, ardor e poder visionário, submeteu uma civilização dividida ao escrutínio".

A escritora, porém, não se prendeu a um só tema, mas sua literatura foi sempre acompanhada do tom combativo e inovador. Prolífica, criou de dramas psicológicos a obras de ficção científica. Em 1994, lançou uma autobiografia, Debaixo da Minha Pele (Companhia das Letras). Com O Carnê Dourado, A Canção da Relva (1950) e A Boa Terrorista (1985) — lançados no Brasil pela Record entre os anos 1970 e 1980 —, Lessing tornou-se uma das mais importantes escritoras do século 20 e ícone também de marxistas e anticolonialistas. Fez críticas veementes ao regime sul-africano, como militante do Partido Comunista britânico entre 1952 e 1956. Por sua postura antiapartheid, ficou proibida de entrar na África do Sul por quase 40 anos, até 1995.

Livre

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A conduta libertária tam­­bém marcou suas relações pessoais. Aos 14 anos, Lessing abandonou a educação formal e passou a conciliar a literatura com vários empregos — foi babá, telefonista, secretária e jornalista. Casou-se duas vezes e teve três filhos: os dois primeiros ficaram na África, e só Peter, do segundo casamento, seguiu com a mãe para Londres quando ela se divorciou. Lessing declarou que não havia nada mais "entediante do que a companhia de crianças pequenas, mesmo que elas sejam doces".

O biógrafo e amigo da escritora Michael Holroyd definiu sua contribuição à literatura como "extraordinariamente rica e inovadora". "Seus temas foram universais, abrangendo desde os problemas da África pós-colonial e das políticas da energia nuclear à emergência de uma nova voz da mulher". Seu agente, Jonathan Clowes, disse que Lessing foi uma "escritora maravilhosa, com uma mente original e fascinante".

Escritora esteve no Brasil nos anos 80

Agência Estado

Doris Lessing esteve no Brasil em 1987, para lançar o livro A Terrorista. Visitou o Rio de Janeiro e São Paulo, onde participou de um debate coordenado pelo crítico literário Leo Gilson Ribeiro, que tinha como convidados o empresário e bibliófilo José Mindlin e os jornalistas Miriam Paglia Costa e Luiz Fernando Emediato.

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Durante o encontro, ela tratou de diversos temas. Sobre a velhice, por exemplo (estava com 68 anos), disse não saber se seria possível manter a lucidez. "Temos de enfrentar a possibilidade de nos tornarmos senis." Comparada por um membro do público a Marcel Proust, ela afirmou que "é um erro comparar um escritor a outros". "O importante em um escritor não é aquilo que o assemelha a outros, mas aquilo que o assemelha a si mesmo."

Ela também fez comentário sobre a forma como a literatura (e sua obra, em particular) era ensinada nas escolas. Para ela, as crianças são levadas a fazer análises sobre livros enquanto deveriam aprender a seguir seu próprio fio na descoberta da literatura e seu divertimento. "A literatura hoje está muito estilizada e eu ficaria muito feliz ao vê-la de volta às mãos de todos. Talvez seja melhor aliar os romances a outras disciplinas nas escolas. Meu livro O Carnê Dourado já foi usado para o estudo de História Contemporânea e Política. Acho bom. Já os professores de literatura não acham."

Doris Lessing afirmou também que "escrever é uma forma de defender-me de mim mesma" e compartilhou com o público a experiência de ter tomado a droga mescalina. "Eu perdi uma grande oportunidade com essa experiência, pois ela foi acompanhada por duas pessoas experientes em mescalina, que estavam ao meu lado. Se estivesse sozinha, acho que teria tido um tempo mais produtivo com essa experiência. Eu chorava sempre. Para mim, não foi um acontecimento importante, mas, para minhas ‘babás’, foi uma coisa muito dolorosa porque achavam que eu estava infeliz."