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O irlandês Clive Staples Lewis, autor de cabeceira de Margaret Thatcher e dos seis últimos presi­dentes ameri­canos |
O irlandês Clive Staples Lewis, autor de cabeceira de Margaret Thatcher e dos seis últimos presi­dentes ameri­canos| Foto:
  • Herói espiritual das culturas beat e hippie, Aldous Huxley foi um ponta-de-lança na abertura dos anos 50 para o pensamento do Oriente com o livro As Portas da Percepção

É o teste clássico de memória para toda uma geração. De uma obviedade brutal – ninguém esqueceria jamais. Naquele anoitecer de sexta-feira em Londres, depois de um dia de trabalho na BBC, eu começava a relaxar no meu apartamento em Chelsea quando o telefone tocou. O prédio só tinha uma linha, FLA 2376 com uma extensão no hall de cada andar. Era o Sanito Rocha, cardiologista de Curitiba que estagiava num hospital londrino: "Muggiati! Mataram o Kennedy!" Nos dias que se seguiram, comecei a assimilar uma série complexa de fatos e desdobramentos que se acumularam nos últimos 50 anos para formar um gigantesco quebra-cabeças ainda não resolvido. A carreata presidencial pelas ruas de Dallas, os tiros, Jacqueline estendendo a mão para o guarda-costas, o terninho Chanel cor-de-rosa manchado de sangue, Lee Oswald matando um policial à saída de um cinema e sendo morto por Jack Ruby quando era levado para a prisão.

Domingo, sentado com os volumosos jornais do dia num banco do Battersea Park, à margem do Tâmisa, procurando me aquecer ao pálido sol daquele final de novembro — li num deles sobre a morte do escritor inglês Aldous Huxley, para mim um homem muito mais importante do que John Kennedy. Não só havia lido sua implacável distopia Admirável Mundo Novo, como Contraponto (1928), em que aplica à narrativa do romance as técnicas da polifonia musical, o que levou um crítico a afirmar que se tratava de "jazz em forma de literatura". E, ainda, Huxley foi um ponta-de-lança na abertura dos anos 50 para o pensamento do Oriente, com As Portas da Percepção, título inspirado num poema de William Blake ("If the doors of perception were cleansed everything would appear to man as it is, infinite."/ "Se as portas da percepção fossem limpas, tudo apareceria para o homem tal como é: infinito.") — do qual o grupo de rock The Doors tirou seu nome. Herói espiritual das culturas beat e hippie, Huxley experimentou drogas como a mescalina e o LSD, e foi com uma overdose de ácido lisérgico que morreu. Doente terminal, impossibilitado de falar, ele escreveu um pedido à sua mulher: "LSD, 100 µg, intramuscular" (100 microgramas de LSD, aplicação intramuscular). Ela injetou uma dose às 11h45 da manhã e outra algumas horas depois. Huxley morreu em Los Angeles às 17h21 do dia 22 de novembro de 1963, aos 69 anos.

Já Clive Staples Lewis nunca foi – como diriam os ingleses – "minha xícara de chá", por seu extremado catolicismo e pelo tipo de ficção a que se dedicou, na linha dos J. R. R. Tolkien da vida (de quem foi amigo). Nascido em Belfast, Irlanda do Norte, foi um acadêmico respeitado, mas só postumamente se tornou um fenômeno de vendas avassalador, autor de cabeceira da Primeira Ministra Margaret Thatcher e dos seis últimos presidentes americanos. Seus 38 livros venderam mais de 200 milhões de cópias e foram traduzidos para mais de 30 línguas, incluindo a série completa das Crônicas de Nárnia para o russo. Pelo final do século 20, mais de 150 livros haviam sido publicados sobre sua vida e obra. E até um asteroide, descoberto em 1988, recebeu o seu nome, o 7644 Cslewis. Morreu em Oxford, Inglaterra, naquele mesmo 22 de novembro de 1963, exatamente uma semana antes de completar 65 anos, pouco depois de desmaiar no seu quarto, às 17h30.

Convertendo tudo para o fuso de Brasília (ainda não vigorava o horário de verão), temos então a seguinte ordem de saída de cena, no mesmo dia 22 de novembro de 1963: Lewis, às 13h30; Kennedy às 16 horas; e Huxley, às 22h21.

A proximidade da morte dos três homens inspirou Peter Kreeft a publicar, em 1982, o livro Between Heaven and Hell: A Dialog Somewhere Beyond Death with John F. Kennedy, C.S. Lewis & Aldous Huxley (Entre o céu e o inferno: um diálogo em algum lugar além da morte com...). O título é claramente inspirado pelo livro de Huxley, Heaven and Hell. Peter John Kreeft, americano, 76 anos, é professor de filosofia no Boston College e autor de uns 50 livros sobre filosofia cristã e teologia. Um de seus temas favoritos é Socrates: já publicou encontros do filósofo grego com outros notáveis (cada um valendo um livro) como Jesus, Maquiavel, Kant, Hume, Descartes, Marx e Sartre. Diz Kreeft, no prólogo, que os três "acreditavam, de maneiras diversas, que a morte não era o fim da vida humana. Vamos supor que estivessem certos e que se encontrassem depois da morte. Como ocorreria a sua conversa? Seria parte da ‘Grande Conversa’ que vem acontecendo há milênios, pois estes três homens representavam as três filosofias de vida mais influentes na história da humanidade: o antigo teísmo ocidental (Lewis), o moderno humanismo ocidental (Kennedy) e o antigo panteísmo oriental (Huxley). Representavam também as três versões mais influentes do cristianismo: o cristianismo tradicional, da corrente principal, ou ortodoxo (o que Lewis chamava de ‘mero cristianismo’), o cristianismo modernista ou humanista (Kennedy), e o cristianismo orientalizado ou místico (Huxley)."

Kreeft tem de fazer muita ginástica mental, e verbal, para colocar um político e um hedonista como Kennedy no mesmo patamar dos dois filósofos. "Kennedy, embora não fosse um filósofo ou teólogo, era provavelmente, de um modo vago e genérico, um cristão humanista. Embora não expressasse publicamente suas crenças religiosas pessoais (o que é em si uma atitude mais humanista do que tradicional: relegar a religião à vida privada), faz por merecer essa classificação."

Sem dúvida, o mais interessante dos três é o terceiro homem, Huxley: "Ele reinterpretou o cristianismo como uma forma da filosofia perene e universal do panteísmo. Como fato histórico, o gnosticismo de Huxley estava mais próximo do coração da sua religião do que o seu panteísmo."

Segundo Kreeft, "os acon­­­te­cimentos de 22 de novembro parece que foram montados providencialmente para criar a situação que eu imaginei neste diálogo: um microcosmo da história intelectual tripartida da humanidade, bem como do atual debate tripartite dos teólogos cristãos. O triálogo repousa no Centro, na dobradiça da nossa história: sua principal questão é a identidade de Jesus."

Depois de apresentar os personagens (C.S. Lewis, teísta; John F. Kennedy, humanista; Aldous Huxley, panteísta), Kreeft inicia a conversa em tom mais bem-humorado:

Lewis: Escute aqui — você nao é o Presidente Kennedy? Como veio parar aqui — onde quer que aqui seja?

Kennedy: Ex-presidente, eu acho: parece que fui assassinado. Quem é você? E – voltando a minha primeira pergunta – em que inferno estamos?

Lewis: Sou C.S. Lewis. Acabei de morrer também. E estou bem seguro de que se enganou quanto ao local. Isso aqui parece bom demais para ser o inferno. Por outro lado, nao vi nenhum Deus. Você viu?

Kennedy: Nao.

Lewis: Entao nao pode ser o céu também. Será que estamos entalados no limbo?

Logo vai entrar em cena Aldous Huxley. No ensaio filosófico Céu e Inferno, publicado em 1956, ele se referiu metaforicamente às duas experiências místicas opostas que decorriam da abertura das "portas da percepção" — não apenas no plano da experiência mística, mas no da vida cotidiana. Huxley denomina "antípodas" as regiões da mente que podemos alcançar através de processos como meditação, carência de vitaminas, autoflagelação, jejum ou – com maior eficácia, segundo ele – do uso de substâncias alucinógenas como mescalina ou LSD. Embora tais estados mentais sejam biologicamente "inúteis", ele os considera significativos do ponto de vista espiritual e declara que são aqueles territórios da mente dos quais derivam todas as manifestações religiosas. Conta, por exemplo, que os cristãos medievais frequentemente experimentavam "visões" do céu e do inferno durante o inverno, quando sua alimentação era severamente prejudicada pela escassez de nutrientes críticos como vitaminas B e C, ocasiões em que contraíam escorbuto e outras deficiências e sofriam alucinações. Os cristãos e praticantes de outras religiões recorriam ao jejum para entrar num estado delirante, tendo acesso a "visões" provocadas por estes "antípodas mentais." Na época contemporânea, diz Huxley, as pessoas podiam alcançar aqueles estados mentais sem danificar seus corpos, recorrendo a certas drogas – ele mesmo começou a fundamentar suas pesquisas pelo uso de substâncias como a mescalina (derivada do cogumelo peyotl) e o ácido lisérgico, o LSD, sintetizado em laboratório. Isso permitiria a qualquer pessoa a consciência de coisas que normalmente não entrariam na sua esfera rotineira de pensamento.

Kennedy: Veja, vem chegando mais alguém. Sabe quem é?

Lewis: Ora, é Huxley! Aldous Huxley. Bem-vindo, Aldous. Como foi que chegou aqui?

Huxley: Do mesmo modo que você, estou seguro. Simplesmente morri. Ora, vejam só! Kennedy e Lewis! Que boa companhia para se morrer... ou para se viver, sei lá o que está acontecendo... Que lugar é esse, afinal?

Kennedy: É o que estamos tentando descobrir. Lewis acha que talvez seja uma espécie de limbo ou purgatório. Só espero que nao seja o inferno.

Huxley: Pois vocês estao errados. É o céu. Só pode ser o céu.

Kennedy: Por que?

Huxley: Porque todo lugar é o céu, se você tiver os olhos iluminados.

Lewis: Até mesmo o inferno?

Huxley: Oba, isso vai ser divertido! Lewis, você nao perdeu nada do seu mau humor socrático, nao foi?

E assim prossegue a balada, com inteligência, profundidade e humor fino. As questões fundamentais são levantadas: Qual é o sentido da existência? Existe vida depois da morte? Podemos provar que Jesus é Deus? Esta é a grande discussão ao final.

Lewis: Se os escritores do Novo Testamento sabiam que Jesus nao posava como Deus e falsificaram a história, colocando isso na sua boca, entao eles nao passam de mentirosos deslavados, e também impingiram ao mundo o maior embuste, a maior mentira e a maior fraude da história.

Huxley: Como pode ter certeza de que nao foi isso exatamente o que fizeram? Nao podemos fazer uma acareaçao com eles dois mil anos depois. Nao existe nenhuma prova concreta.

Lewis: Mas pense nas consequências dessa hipótese.

Huxley: No que?

Lewis: No absurdo dos santos que viverem e dos mártires que morrerem por uma piada blasfema de mau gosto.

Huxley: Lamento por eles, mas erros trágicos acontecem.

Lewis: E o que poderia ter motivado a criaçao original da mentira? Que vantagem levaram seus inventores? Perseguidos, exilados, torturados, aprisionados e assassinados, foi isso o que ganharam. Pessoas que mentem e enganam, especialmente quando a mentira é tao inteligente, completa e sistemática, sempre o fazem por uma razao, por um motivo ou em busca de alguma vantagem pessoal. Quem fez isso e por que motivo?

Huxley: Parece psicologicamente improvável. Nao, a maioria dos modernistas nao trilha esta linha. Acham que os textos foram embustes deliberados, mas mitos.

Lewis: Isso é ainda mais absurdo, tanto literalmente como teologicamente. Literalmente porque os Evangelhos simplesmente nao foram escritos como mitos, mas como história. Teologicamente porque nenhum judeu poderia confundir Criador e criatura de maneira tao blasfema.

Huxley: Hmmm... Seja ou nao verdade o que você me diz, certamente me deu um quebra-cabeças, talvez um enigma zen, certamente matéria para muito pensamento. Acho que eu devia me entregar um pouco mais a isso – a pensar – antes de continuar a conversa com você. Para mim, de qualquer modo, nosso diálogo parece ter chegado a um fim, ou a um ponto de transiçao.

Lewis: Talvez a um começo.

Um final ao melhor estilo de Casablanca, não? Afinal, Peter Kreeft publicou seu livro em 1982, quando o filme de Humphrey Bogart passava por um revival. Eu proponho um acréscimo que tem mais a ver com os tempos de neorrebeldia que vivemos hoje. Vamos inserir, nesta Grande Conversa, a figura enigmática de Lee Harvey Oswald, o indigitado matador do Presidente dos Estados Unidos — Oswald, que foi assassinado 48 horas e sete minutos depois de Kennedy:

Ao cabo de dois dias de debate teológico, JFK, C.S. Lewis e Huxley, já estão esgotados. Afinal, morrer também cansa. É quando a porta abre e entra, meio cabreiro, um rapaz de vinte e quatro anos.

Kennedy: Meu jovem, eu nao te conheço de algum lugar?

Oswald: É possível... Eu estava de olho no senhor em Dallas...

Lewis: De olho no Senhor? Você acredita em Deus?

Oswald: Pare com isso, tio... Sou comunista, fui doutrinado em Moscou.

Huxley: Comunista? Que coisa mais dicotômica! Tome uma pílula destas, rapaz. Você vai viajar — e como você vai viajar...

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