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Abdel Haidara e os manuscritos que salvou da destruição por fundamentalistas | Library of Congress/
Abdel Haidara e os manuscritos que salvou da destruição por fundamentalistas| Foto: Library of Congress/

Era um tipo de fé que tratava os livros sagrados com grande reverência, mas também era aberta às ideias seculares, que os jihadistas consideram blasfemas.

Joshua Hammer escritor.

Por onde passam, os jihadistas deixam um rastro de destruição. Em sua guerra santa, põem ao chão monumentos antigos, queimam bibliotecas e destroem estátuas e pinturas que contrariem sua visão estrita do Islã. Quando um grupo ligado à Al-Qaeda tomou a cidade histórica de Timbuktu, no norte do Mali, não foi diferente: templos sagrados ancestrais foram derrubados a golpes de pá e enxada.

Mas o seu tesouro mais valioso, uma coleção de centenas de milhares de manuscritos com séculos de idade, passaram incólumes. Eles foram salvos das fogueiras dos fundamentalistas por um herói improvável: o bibliotecário Abdel Haidara. No livro reportagem The Bad-Ass Librarians of Timbuktu (Os Destemidos Bibliotecários de Timbuktu, em tradução livre) o jornalista americano Joshua Hammer conta a história do literato que comandou uma rede de contrabandistas amadores a fim de resgatar os documentos do território ocupado pelo exército jihadista.

Destruídos pelo fundamentalismo islâmico

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À época da invasão, em 2012, Timbuktu possuía 45 bibliotecas, que reuniam um total de 377 mil manuscritos. “Eles retratam o tipo de islamismo que floresceu durante a Era de Ouro da cidade, entre o final do século XV e o século XVI”, disse Hammer, em entrevista à Gazeta do Povo. “Era um tipo de fé que tratava os livros sagrados com grande reverência, mas também era aberta às ideias seculares, que os jihadistas consideram blasfemas”.

Com os preciosos manuscritos ameaçados pelo exército invasor, Abdel Haidara montou um elaborado esquema que retirou os livros das bibliotecas e levou, no lombo de burros, escondidos no piso de carros ou estocados em barcos, até as regiões seguras do país.

Hoje, os invasores foram derrotados com a ajuda do exército francês, mas a luta pela preservação dos manuscritos não acabou. “Eles estão bem protegidos em grandes prédios climatizados na cidade de Bamako”, diz Hammer. “Abdel Haidara está impaciente para reabrir as bibliotecas de Timbuktu, mas é impossível dizer quando isso vai acontecer. O norte de Mali ainda é considerado muito inseguro”. Ainda vai demorar para o bibliotecário poder dizer que ganhou, definitivamente, sua luta contra o fundamentalismo.

O líder islâmico Ahmad Al Faqi Al Mahdi no Tribunal Criminal Internacional, onde está sendo julgado por ter destruído patrimônio da humanidade em Timbuktu, em 2012 | Patrick Post/AFP

Os personagens da história

O livreiro que ajudou a salvar os preciosos manuscritos de Timbuktu e os anônimos e improváveis heróis que o auxiliaram na difícil tarefa de enfrentar um dos braços da Al Qaeda

Abdel Kader Haidara

Filho de um notório acadêmico da cidade, Abdel Haidara cresceu em meio aos manuscritos do pai. Adulto, foi convidado para trabalhar como curador da biblioteca nacional de Timbuktu, viajando pelo país a fim de coletar os manuscritos que eram retidos pelas famílias desde a invasão francesa. Para isso, atravessava o deserto a camelo, visitava cidades recônditas e acampamentos nômades, convencendo as pessoas a cederem suas preciosas heranças ao governo. Chegou a encontrar manuscritos escondidos em cavernas escuras no Saara. “Ele é um homem comprometido e generoso, que devotou sua vida aos manuscritos. Mas nem sempre ele jogou pelas regras”, diz Hammer. “Foi justamente essa característica que o ajudou a vencer os jihadistas nos anos seguintes.”

Ansar Dine

Em 2012, jihadistas aproveitaram a falência do governo Qaddafi, na Líbia, para invadir prédios públicos e saquear os estoques do exército. Armados com fuzis, munição e granadas, o grupo Ansar Dine, ligado à Al Qaeda, dominou toda a região norte do Mali, onde está localizada Timbuktu. Ali, impuseram a lei da Sharia, apedrejando os infiéis e prendendo mulheres que andassem sem véu ou usando brincos e perfume. Passaram a destruir os símbolos do islã moderado que a maioria dos habitantes seguia, como templos e até instrumentos musicais. Era apenas uma questão de tempo para que os manuscritos se tornassem seu alvo.

Heróis anônimos

Antes que isso acontecesse, Abdel Haidara reuniu uma equipe diletante — formada por secretários, arquivistas, bibliotecários, guias turísticos e seus parentes — para retirar os livros das bibliotecas e estocá-los em mais de 30 casas espalhadas pela cidade. Fizeram isso debaixo das barbas dos fundamentalistas, carregando os documentos em burricos ou carrinhos de mão nas horas mais movimentadas da cidade.

Contrabandistas amadores

Com o recrudescimento do domínio da Al Qaeda, os manuscritos precisaram ser retirados da cidade. Cerca de 207 mil foram levados de carro, passando despercebidos pelos bloqueios jihadistas. Outros cem mil foram levados de barco, pelo rio Niger. Cada embarcação tinha que ter dois capitães, de forma a navegar 24 horas por dia, e nenhuma poderia levar mais de 15 caixas de documentos, para que um eventual naufrágio não causasse grandes prejuízos. Apesar da complexidade da empreitada, a equipe conseguiu contrabandear os manuscritos para fora da cidade, sem perder um único no caminho. Salvaram assim, uma herança cultural de suas famílias, do Islã e da própria humanidade.

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