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Deleuze se pergunta a certa altura de sua vida se o pensamento é o resultado de uma discussão entre amigos ou rivais. Aqui, uma corruptela de sua filosofia. O fantasma de Deleuze atormenta meu amigo chato de São Paulo (Macsp) que, em visita a Curitiba, conversa comigo. Estamos fazendo um tour pelos espaços de arte da cidade.

Macsp: Vi duas situações no jornal mais importante do estado...

Eu: Quais?

Macsp: Um leitor do jornal estava indignado com o número de notícias sobre São Paulo. Ele dizia que Curitiba voltava a ser uma comarca. Outro, dono de uma galeria, dizia que as pessoas precisam entender a diferença entre um grafite e um trabalho que utiliza o grafite... Vocês ainda não entenderam essa diferença?

Eu: Não é bem assim. Creio que algumas pessoas entendem e outras não... Quanto à comarca, também isso é relativo... Temos espaços de arte e o estado produz muita discussão sobre o assunto... Acho que o cara da galeria fazia uma referência a uma exposição do MON, dos Gêmeos... Embora o fato de um trabalho estar naquele museu não lhe dê garantias de nada...

Macsp: Como esta exposição do MAC, que traz trabalhos de alunos?

Eu: Não! Não é sempre que o MAC traz... exposições de alunos, como você diz... e as exposições de alunos podem ser muito importantes... Você está sendo maldoso. São Paulo também expõe... alunos.

Macsp: Ao lado de trabalhos de professores?

Eu: Ao lado de trabalhos de professores.

Macsp: Mas vocês não têm bienais como nós temos, né? Uma cidade tão rica...

Eu: A capital tem índices absurdos de riqueza, mas é também muito pobre... e precisa se preocupar com o trânsito, com a violência...

Macsp: Mais que São Paulo ou Rio?

Eu: Não. Não dá para comparar... Nós somos ao mesmo tempo mais ricos e mais pobres... e já tivemos bienais de fotografia, temos um dos maiores eventos de cerâmica do país, temos o MON, temos o MAC, a Casa Andrade Muricy, o Memorial...

Macsp (rindo): Com trabalhos de alunos? ... E as galerias contemporâneas?

Eu: Duas, três... Duas... Uma e meia. Não sei. Funcionando efetivamente você quer dizer?

Macsp: E elas funcionam, presumo!

Eu: Sim, claro, fazem eventos, vendem loucamente, trazem convidados, discutem com a comunidade acadêmica... seus representantes levam os trabalhos locais para fora... participam de comissões julgadoras...

Macsp: Nossa! Não sabia que era tanto. Geralmente Curitiba parece uma geladeira do Sul; desculpe a brincadeira! E quem são os artistas paranaenses mais conhecidos, dessas galerias, quero dizer?

Eu: É... Deixe-me pensar... Assim, conhecidos nacionalmente?

Macsp: ... e os críticos e divulgadores e agitadores culturais? De relevo, quero dizer.

Eu: Só um pouquinho... Já lembro do nome... Acho que estou cansado.

Macsp: E vocês não fizeram mais aquele encontro de artistas...?

Eu: O Faxinal das Artes... você diz... não, não fizemos. Parece que todo o dinheiro para esse tipo de discussão desemboca no MON, atualmente. Se temos a sorte de exposições legais, beleza. Se não temos, também não há nada.

Macsp: Eu vi num site fotos de exposições de decoração, tudo muito bege e muito jeca. Não há um arquiteto sequer que use trabalhos contemporâneos?

Eu: Não seja maldoso. Esse mercado move milhões!! É mais ou menos assim... acho que as mostras de decoração seguem o gosto do público... talvez não haja mercado de arte contemporânea... então ninguém usa os trabalhos contemporâneos. Ou não se entende mesmo os trabalhos contemporâneos. Decerto são feios demais, grandes demais, insignificantes demais. Quando os profissionais usam algo, voltam a confundir um rabisco, a mandala da dona Maricota, essas coisas, com arte contemporânea. Acho que é falta de informação. Dia desses, uma famosa loja da cidade – que também tem em São Paulo – expôs uns manequins na vitrine. Acho que eles preferem manequins a trabalhos!

Macsp: E a federal de vocês não se impõe? Não há outras universidades públicas no estado? Não promovem discussões, palestras, mostras...?

Eu: Claro, ou você acha que somos uma comarca de São Paulo? Talvez esses movimentos das universidades não tenham o apoio devido, ou a divulgação que merecem, ou ainda não têm poder político, ou ainda canalizam seus interesses para outras questões culturais, como a da cultura popular...

Macsp: Mais um entendimento estranho de "cultura" da era Lula... Antes, defendíamos uma idéia mais ampla de cultura, diferente da erudita, e hoje temos que correr atrás da cultura erudita porque ela anda perdendo espaço...

Eu: Você diz isso... mas, se for verdade, foi o que ocorreu com a Literatura nos espaços públicos... Ela cedeu lugar a todo tipo de discussão insignificante... talvez ande ocorrendo isso com a música... mas não é um pouco de saudosismo seu ou nosso? Será que a gente não está velho ou querendo que as pessoas leiam Thomas Mann e apreciem uma coisa que talvez nunca entendam, a arte contemporânea?

Macsp: Acho que tem isso sim, mas que tipo de país estamos construindo, principalmente vocês do Sul, se não dão – ou não damos – importância para outras manifestações artísticas que não sejam pagode, rap, funk, sertanejo, calipso...

Eu: Cuidado, esse pessoal tomando tubão pode nos ouvir!! Isso é preconceito seu, talvez... Acho que há espaço para todo mundo...

Macsp: Mas você mesmo na faculdade defendia que a arte é o discurso que revoluciona, que perturba, que desestrutura!! Lembra das palavras mágicas: desestrutura, desconstrução?

Eu: Lembro, mas havia também marginalidades, centros, a voz dos pequenos... os tempos são outros. Hoje a questão maior é alteridade, multiculturalismo, cibercultura...

Macsp: Mas a arte não poderia discutir isso tudo? Não seria interessante uma bienal que colocasse isso em xeque, que fizesse – poucas pessoas, vá lá, antes que você me corrija – as pessoas pensarem no que andam fazendo, com tudo, inclusive com a arte?

Eu: Você se esquece do seguinte: o que ocorre com a Arte, com letra maiúscula, não é apenas uma decisão minha ou sua... é uma questão mais ampla, política...

Macsp: Você mudou de idéia e resolveu adotar aquele discurso do nosso ginásio, de que o governo deseja as pessoas burras? Antes, você ridicularizava o discurso do seu partido...

Eu: Não sou mais "do partido" e fico pensando até que ponto isso não seja verdadeiro, mas não penso que haja uma equipe do governo ou dos governos matutando, decidindo sobre isso. De qualquer forma, vejo que a arte contemporânea não consegue penetrar em diversas camadas sociais, por falta de apoio, por falta de vontade política, por uma idéia tosca de "arte", por conservadorismo, pelo poder do mercado da arquitetura e da moda, porque não queremos talvez olhar para os trabalhos contemporâneos e pensar, porque, como já disse a você, pensar cansa, porque é mais fácil ver uma exposição de grafite ou de toy art, porque gostamos mais da mandala da dona Maricota porque ela combina com nosso sofá bege, mesmo, porque...

Macsp: Calma, eu só queria perguntar umas coisas!

(...)

Macsp: Então, já que não tem uma grande exposição no MON, vamos pegar um cineminha?

Eu: Vamos, mas não sei se os filmes agradam!

Macsp: Vocês não têm espaços de arte?

Eu: Temos dois públicos e um privado, mas as salas públicas não são lá muito boas e passam uns filmes meio segunda guerra e a privada passa uns blockbusters... se quiser.

Macsp: Ah, então vamos ver um teatro legal. Vocês têm dois dos maiores espaços de teatro do país, um privado e um público!!

Eu: Mas não seja ingênuo. Vocês também em São Paulo não têm óperas perpétuas ou grandes encenações nos grandes espaços... Não vai rolar...

Macsp: E as dezenas de espaços pequenos de teatro da cidade?

Eu: Se você quiser ver uma peça tipo rock horror show, realmente há várias opções.

Macsp: Então vamos comer!

Eu: Comida tem bastante, mas antes quero mostrar um dos estádios que vão sediar os jogos da copa!! Vai que a gente recebe a seleção de Burkina Faso na cidade!! Vamos procurar uma camisa oficial do time?

Benedito Costa Neto é crítico e colecionador de arte contemporânea paranaense. Leciona no Unicuritiba e no mestrado em Letras da Uniandrade.

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