Frances Kazan conta que o diretor era admirador das tragédias gregas| Foto: Divulgação
Rio Violento não obteve sucesso na bilheteria, mas era um dos favoritos do cineasta
Elia dirige Marlon Brando em Sindicato de Ladrões, de 1950

A ambivalência e a incerteza. Eram esses os segredos de Elia Kazan para contar uma boa história. Quem revelou foi Frances Kazan, viúva do diretor turco de origem grega, dono de uma das obras mais importantes na história do cinema, que morreu em 2003, aos 94 anos. A escritora britânica está em São Paulo a convite da 35.ª Mostra Internacional de Cinema para acompanhar as exibições de uma retrospectiva de nove filmes do diretor, alguns deles com cópias restauradas.

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Além de romancista com dois livros publicados, Frances também é especialista em História da Turquia, interesse que, no início dos anos 1980, fez com que se aproximasse de Kazan, com quem viveu até a morte do diretor. Convidada para falar aos alunos da Fundação Álvares Penteado (Faap), após a exibição de Rio Violento (1960), disse que também foi com ambivalência e incerteza que aceitou o convite para o debate. "Não conheço muito sobre cinema." Pode até ser verdade, mas sobre o homem com quem foi casada por mais de duas décadas ela tinha bastante a dizer e contar.

A escolha de Rio Violento foi da própria Frances e não foi nada aleatória. Embora a Mostra esteja exibindo obras-primas consagradas, como Uma Rua Chamada Pecado (1949) Sindicato de Ladrões (1950), Vidas Amargas (1953), Frances optou pelo drama estrelado por Montgomery Clift porque o filme, que não foi um sucesso de bilheteria, estava entre os favoritos de Kazan. "É uma história que estava à frente de seu tempo, por discutir a questão ambiental [a construção de uma usina hidrelétrica no Rio Tennessee] e as tensões raciais no Sul profundo dos Estados Unidos. Elia achava que o cinema americano ainda não havia tratado do assunto de maneira adequada", justificou escritora.

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O outro título predileto do diretor em sua filmografia, conta Frances, era Terra de um Sonho Distante (1950), que não é autobiográfico, mas conta a jornada tortuosa de um tio do cineasta, chamado Joe. Como Elia, ele também partiu em busca de uma vida melhor no chamado Novo Mundo.

Nascido em Kaysen, na região turca Anatólia em 1903, Elia e sua família emigraram para os Estados Unidos quando ele tinha quase 5 anos. "A travessia do Atlântico foi muito dura e ele jamais a esqueceu. Elia amava a América, mas era fascinado por suas raízes", conta a viúva. No fim da vida, tinha paredes inteiras do escritório de sua casa cobertas de fotos de seus parentes, sobretudo das mulheres – a mãe, as avós e tias, que ajudaram a cuidar do menino tanto na viagem transoceânica como durante sua infância. "Ela as adorava."

No documentário Uma Carta a Elia, homenagem emocionada de Martin Scorsese a um de seus cineastas favoritos, Kazan mostra ao diretor de Taxi Driver essas imagens de família, e confessa ter nostalgia de uma terra onde nunca viveu, de uma cultura que trazia nas veias. "Amo os Estados Unidos, mas sempre me senti um outsider."

Scorsese, também fã de Rio Violento, foi amigo de Kazan, a quem entregou um Oscar honorário em 1999, entre vaias e aplausos dos presentes à cerimônia. No início dos anos 50, Kazan teria entregado à comissão anticomunista do Congresso americano, liderada pelo senador Joseph McCarthy, nomes de colegas que teriam ligações com a esquerda. Frances, indagada por um aluno da Faap sobre esse tema espinhoso, desconversou: o marido nunca teria conversado com ela sobre o assunto, mas escreveu extensivamente sobre o trauma de ter sido visto, por boa parte da vida, como traidor em suas memórias, Elia Kazan: A Life. "Eu sou inglesa e isso não faz parte da minha história."

Livros

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Frances preferiu, sim, falar sobre o homem Elia Kazan que conheceu de perto. Contou que ele detestava jogar conversa fora, bater papo. Preferia trabalhar. Depois de seu último filme, O Último Magnata (1976), dedicou-se à literatura. "Escrevia exaustivamente, com muita disciplina, como fez seus filmes", contou a viúva. Foram sete livros escritos ao longo da vida, incluindo a já mencionada autobiografia. O primeiro deles, The Arrangement, que o próprio diretor adaptou para o cinema em Movidos pelo Ódio (1969), ironicamente, lhe deu mais dinheiro do que jamais ganhou por trás das câmeras. "Elia é do tempo em que não se ganhava tanto em Hollywood. E ele não achava justo ganhar 10 mil vezes mais do que seus cameramen."

"Ele era simples, não gostava de comer em restaurantes caros, e não se importava com o que vestia. Gostava muito de ler, ou melhor, de reler seus livros de cabeceira." Os autores prediletos: Shakespeare, Homero e Tolstói. No cinema, conta, admirava John Ford (de Rastros de Ódio e No Tempo das Diligências) e os diretores soviéticos do cinema mudo. No fim da vida, quando pressentiu que estava próximo da morte, assistia aos próprios filmes compulsivamente. "Queria se lembrar do que havia feito e ter certeza da importância de seu legado."

Ao lhe perguntarem se teria algo na trajetória de Kazan que serviria de lição aos estudantes de cinema, ela parou, pensou e disse: "Lembro que Elia dizia que qualquer pessoa que deseje contar histórias, trabalhar com teatro e cinema, tem de ler as tragédias gregas, nas quais o drama, a ação, surgem a partir dos personagens. Era nisso que ele acreditava." Foi com os autores de sua terra ancestral que o cineasta, vencedor de dois Oscars de melhor direção (por A Luz É para Todos, de 1947, e Sindicato de Ladrões), aprendeu a se aproximar da verdade por meio da ambivalência e da incerteza.

O repórter viajou a convite da 35.ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo