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Colar do designer Benedito Costa Neto: erudição x trabalho feito à mão | Marta Xavier/Tienda
Colar do designer Benedito Costa Neto: erudição x trabalho feito à mão| Foto: Marta Xavier/Tienda

Há sempre algo com o poder de mudar nossas vidas. No meu caso, foi uma palestra da professora Vera Tindó. Ela nos contou que na Polinésia persistem, em certos lugares, muitas habilidades manuais num só indivíduo, pois cada um tem de fazer seu próprio barco, sua própria casa, e assim por diante, não havendo exatamente uma divisão social do trabalho, como em outros povos e, evidentemente, em nosso mundo de molde ocidental e industrializado. A professora tirou duas conclusões a respeito de sua experiência: a) nós muitas vezes cremos que temos uma só habilidade, ou uma vocação; e b) as necessidades podem moldar um novo tipo de habilidade.

Na época, eu acabara de escrever um texto longo sobre Mário de Andrade, especificamente "Balança, Trombeta e Batleship", no qual eu afirmava que Mário fora mais que um polígrafo, fora um polímata. Eu afirmava que Mário teria sido não apenas um homem "que aprendera de tudo", como a definição mais comum de "polímata", mas sim um homem que tivera várias habilidades, inclusive manuais. Pessoas como Mário possivelmente sejam cada vez mais raras, uma vez que o universo de necessidades (em) que vivemos aponta para saberes restritos e atividades também restritas, dadas as obrigações de tempo e de metas.

E desse encontro inusitado de vozes, surgiu uma pergunta: por que não podemos ser (re)conhecidos por mais de uma habilidade?

Evidentemente, vivemos contradições. Fala-se abertamente em interdisciplinaridade, mas presenciamos um saber dividido e muitas vezes isolado, que não dialoga com outros saberes e outras práticas. No entanto, centro a discussão no mote deste caderno: o fazer com as próprias mãos.

Para o sociólogo Zigmunt Bauman, o homem do mundo líquido (sua designação para o mundo contemporâneo) perdeu justamente a habilidade do fazer com as mãos, a habilidade de ser artífice. Isso não seria um problema, porque temos a tecnologia – e o mercado – que vem em nosso socorro e, se não podemos fazer um vestido na máquina caseira ou um bolo decorado par a festa, nós os compramos prontos. O vestido da loja pode ter costura mais bem feita e o bolo da confeitaria não vem torto. Assim, usamos nosso tempo livre para ir ao salão (boa companhia com um vestido novo) ou fazer aquele trabalho da empresa (ideia disseminada de que podemos "adiantar o serviço"). A questão para Bauman é que muitas vezes fazemos uma troca terrível: compramos os objetos não pela facilidade da compra ou pela organização da vida diária ou ainda porque precisamos efetivamente da compra. Compramos pela compra em si mesma, pela ilusão da felicidade que a compra nos traz e também porque cremos e aceitamos que um vestido de loja – principalmente grifado – e um bolo de confeitaria – principalmente a da moda – podem nos trazer mais felicidade, seja pela admiração, seja pelo fato de necessitarmos da aceitação nos grupos aos quais pertencemos. A troca de que trata o sociólogo é ainda mais cruel quando ocorre da seguinte forma: em vez de fazermos um trabalho "com nossas próprias mãos", procuramos o "já feito", mesmo quando precisamos presentear os entes ou os amigos próximos. Nossa perda da "capacidade de artífice" provoca uma troca simbólica que não era possível no mundo pré-moderno: a de atitudes – que mostrariam amor, compaixão, amizade – por objetos.

Diante desse quadro complexo (muitos outros autores que pesquisei apontam para situações semelhantes), decidi que era o momento de pensar numa saída para o mundo de janelas, universos paralelos e blind dates, trocas virtuais, presentes vazios e caros, muitas vezes sem graça, comprados às pressas, e realizar "coisas" com as mãos. Certo dia, entrei com uma amiga numa loja de peças para bijuterias e decidi montar algumas para presentear as muitas mulheres de minha família. O sucesso foi imediato e, a partir do Natal de 2005, fiz pesquisas sobre a questão sociológica do ornamento, sobre peças e preços, sobre o mercado de consumo e abri uma marca, cuja especialidade é justamente o trabalho manual, que gasta tempo, um dos grandes luxos do mundo contemporâneo. Comecei eu mesmo, em paralelo com o trabalho intelectual, e depois necessitei de ajudantes, a quem ensinei a arte desse trabalho em questão, após tê-lo aprendido com exímias artesãs.

A reflexão trouxe outras considerações: o trabalho manual é ainda visto como secundário ou vergonhoso, e mesmo nas grandes empresas em que ele é o centro das atividades (a maison da qual sai um vestido por quarenta mil euros, a oficina da qual vai ao mercado de alto luxo um relógio de cem mil euros), está na base da hierarquia e não no topo. Algumas habilidades têm caído em desgraça de acordo com os grandes discursos de nossa época: peleteiras são uma ou duas na cidade, grandes alfaiates hoje vivem de consertos; no entanto, sempre precisamos de um martelinho de ouro, da agulha e linhas certas para a bainha de seda pura, de dedos hábeis para os dreadlocks.

Alguém atento poderá pensar que perverti o pensamento de Bauman. A saída para o mundo líquido não seria abrir mais um negócio, porém quero resgatar com meu trabalho não a condição de artífice e sim as possibilidades desse trabalho. Descobri, logo no começo que o trabalho manual – eu já aprendera tapeçaria – tinha a ver com minha procura pelas palavras: há certa semelhança entre nós, elos e pecinhas miúdas, que juntos formam um colar, motivo ou conjunto, com os intrincados caminhos pelos quais um texto anda.

* Benedito Costa Neto é consultor de Língua Portuguesa com doutorado em Literatura, professor da Unicuritiba, escritor e, há 4 anos, tornou-se designer de acessórios.

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