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Baixinho, troncudo e sempre indignado. Nos conhecemos há muitos anos. Quando as coisas enguiçam aqui em casa – chuveiro, torneira, tomada, fio terra, encanamento, instalação de rede etc. – alguém sai esbravejando pelo corredor:

– Precisamos telefonar para o Remi!

Nem sempre pode vir no mesmo dia. Tem compromissos com outras criaturas às voltas com enguiços domésticos. Marca para o dia seguinte. Mas já aconteceu de dizer, no estilo prussiano que adota ao telefone:

– Em meia hora.

Chega numa espécie de jeep-camionete-furgão azul claro, com rodado poderoso, como se fosse participar de uma expedição com Indiana Jones. Dentro dela – nunca olhei, mas suspeito, pelas tralhas que é capaz de retirar de lá – podemos encontrar de tudo. Pás, enxadas, picaretas, martelos, pregos, rolos de arame, ferramentas diversas, fita isolante, parafusos de variado calibre, além de um pneu furado que, não se sabe o motivo, passeia com o Remi de um lado para outro.

Um dia vi o Remi se transformar numa árvore de Natal.

Na garagem lá de casa, um bocal emperrado carbonizara a rosca de uma lâmpada, transformando-a numa massa negra e retorcida. O Remi posicionou a escada e, num instante, estava empoleirado no degrau mais alto. Retirou uma chave de fenda do bolso e passou a cutucar no bocal. Entrei em pânico, como sempre:

– Cuidado, Remi! Olha o choque!

Como mantenho respeitosa distância de criaturas elétricas, achei uma temeridade ele remexer aquele bocal com a chave de fenda.

– Bobagem, disse ele, rindo da minha cara.

Não acredita em choque, menos ainda em explosões ou faíscas. Não desliga a chave geral, a primeira coisa que julgo que deveria fazer.

– Não quer que eu desligue a chave geral? pergunto.

Ele espicha o pescoço e dá uma risada debochada na minha direção. Acha que eu sou um pateta medroso.

Volta a cutucar o bocal e, como se fosse desencadeada por ira divina, a explosão acontece. Não apenas uma explosão; várias. Seguidas por uma chuva interminável de faíscas que descem do bocal, envolvendo o Remi e a escada num cone cintilante. Explodem centelhas amarelas, vermelhas, verdes, azuis. Remi virou uma árvore de Natal.

Foi a primeira vez que ele perdeu o sorriso malicioso diante de meus temores. Não sei como, conseguiu retirar a chave de fenda do bocal, as faíscas pararam, e ele desceu (ou despencou) da escada. Virou a careca redonda na minha direção e disse:

– Acho bom a gente desligar a chave geral.

E disparou a rir, entre furioso e divertido com o espetáculo que proporcionara.

Remi não é apenas eletricista, é um faz-tudo, tal como o Barbeiro de Sevilha. Conserta qualquer coisa que apresente enguiço, faz funcionar equipamentos falecidos há muito. Mas, além de faz-tudo, é um sabe tudo. Já foi cameraman, no tempo daquelas maquinonas de cinema que pesavam toneladas. Fez telejornalismo. Ficou meio torto de tanto carregar equipamento pesado. Mas é sobretudo exímio pescador. Sabe coisas sobre peixes que me deixam estarrecido. Onde pescar, como pescar, quando pescar. Eu, que nem sei comprar peixe na feira, fico pasmo. Conhece, além disso, todos os bairros da cidade, suas ruas, os loteamentos de origem, as brigas de limites de terreno. E, acima de todas as coisas, odeia o IPTU. Quando quero enfurecer o Remi, puxo conversa sobre IPTU. Ele esbraveja, conta casos, reclama do quanto pagamos, do pouco que recebemos em troca, xinga todos os prefeitos existentes e imagináveis. A par disso, depois de passar o dia concertando enguiços pela cidade, gosta de ouvir Beethoven em bom volume, numa casa que ele mesmo construiu num terreno cheio de árvores.

Remi ama aquilo que os livres-pensadores alemães do século XIX chamavam de "vida natural". Acho que foi hippie, pois terá tido cabelo algum dia. Fica possesso com a destruição da natureza. Dia destes me contou que foi visitar um amigo em Florianópolis, no Costão do Santinho. Voltou enfurecido:

– Conheci aquilo quando era praia selvagem, homem. Céu e mar. Agora é só prédio, asfalto, casa com piscina, uma Hollywood de araque! Gente fedendo a perfume, cachorrinhos frescos puxados por madames! E tem polícia, guarda-noturno, segurança. Quando freqüentava aquele pedaço, parava o carro, ia até a beira da praia e dava uma mijada generosa olhando para o mar. Era o paraíso!

E conclui, indignado:

– Se fizer isto hoje, me colocam em cana!

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