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J. K. Rowling aprendeu a lição. Num feito digno de Hermione Granger, a escritora britânica se revelou uma aluna aplicada dos clássicos da mitologia e dos contos de fadas ao cunhar um capítulo final para a saga de Harry Potter que, no mínimo, faz plena justiça à expectativa que cercava o livro. Parece loucura dizer isso de um romance com quase 800 páginas, mas o leitor que encara "Harry Potter and the deathly hallows" ("Harry Potter e as relíquias da morte") mal tem tempo de respirar. A história avança com força quase irresistível, mais sombria e tremenda do que qualquer cenário apresentado antes no mundo de Rowling.

(Quem não quer saber mais detalhes sobre a trama não deve continuar a leitura)

É claro que essa sensação de correria claustrofóbica é só um reflexo do que acontece a Harry e seus melhores amigos, Ron e Hermione, praticamente da primeira à última página - o Menino que Sobreviveu e seus dois escudeiros passam quase o tempo todo como fugitivos. Temos, é verdade, um ou outro momento de paz, com comida fumegante na sede da Ordem da Fênix ou sessões de desgnomização do jardim na casa dos Weasley, mas são interlúdios breves diante da situação real: o trio de amigos não passa de um bando de proscritos.

E eles não estão sozinhos. Enquanto Harry, Hermione e Ron correm para recuperar e destruir os Horcruxes, os objetos que servem de receptáculo para pedaços da própria alma de Lorde Voldemort e são a chave para a derrota dele, todo o universo paralelo dos bruxos vira de ponta-cabeça. O Ministério da Magia é dominado pelo próprio Voldemort e seus asseclas, com resultados que só podem ser comparados ao pior crime do mundo real: genocídio. Voldemort não quer só vingança contra seus inimigos ou matança indiscriminada: a nova ordem do Senhor das Trevas exige pureza de sangue, e todos os bruxos de sangue não-mágico, bem como os de sangue "nobre" que ousam defendê-los, estão condenados pelo simples fato de existirem.

Não é de estranhar, portanto, que os primeiros dois ou três capítulos pareçam quase pingar sangue, com o fim trágico e repentino de personagens que os leitores da saga certamente tinham aprendido a amar. Nem é de admirar que Harry comece a achar que suas próprias mãos estejam sujas de sangue, por mais que o personagem mantenha sua decisão de não matar até o último instante da narrativa.

Daí a ironia do título do livro: em meio à busca pelos Horcruxes, o jovem bruxo e seus amigos dão de cara com a lenda das Relíquias da Morte. (Do ponto de vista literário, a lenda é um golaço de Rowling: trata-se de um conto de fadas dentro de um outro conto de fadas, um artíficio sofisticado do qual muitos detratores certamente não achavam que ela fosse capaz.) As Relíquias são três artefatos mágicos - uma varinha invencível, uma pedra capaz de ressuscitar os mortos e um manto de invisibilidade (é, aquele manto) - criados, reza a lenda, pela própria Morte. O possuidor do trio tornar-se-ia senhor da Morte.

É fácil imaginar a tentação da tríade para alguém que levou a vida de Harry. Trazer de volta Lílian e Tiago, seus pais, mortos tão cedo? Ressuscitar o mentor Dumbledore e o adorado padrinho, Sirius Black? O bruxo tem de enfrentar justamente a indecisão entre seguir o plano traçado para eliminar Voldemort de uma vez por todas e abraçar a tentação das Relíquias, e é a tensão entre as duas coisas que acaba decidindo seu destino.

Como essa descrição com o mínimo possível de spoilers talvez deixe entrever, há muito pouco maniqueísmo de verdade no capítulo final da série. Harry já cresceu o suficiente para aprender que pessoas totalmente más ou totalmente ruins não existem no mundo dos bruxos ou dos trouxas, e finalmente descobre que até Dumbledore tem esqueletos no seu armário; que seu primo trouxa está longe de ser tão estúpido ou sem sentimentos quanto parece; e que a força salvadora do amor materno está longe de ser exclusividade de Lílian Potter.

Quando perguntaram certa vez a J.R.R. Tolkien, o autor de "O Senhor dos Anéis", qual era o tema predominante de seu livro, a resposta foi: "Morte - morte inevitável". A explicação não ficaria fora de lugar na boca da própria J. K. Rowling, e é irônico que tantos grupos religiosos radicais tenham querido ver satanismo nos sete livros da série, porque a lição final que Harry aprende é profundamente cristã. Há destinos muito piores que a morte, e o único jeito de realmente derrotá-la é libertar-se do medo dela.

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