Ingrid Betancourt escreveu um manual de sobrevivência física e emocional de uma refém| Foto: Divulgação
Veja o que Ingrid Betancourt vivenciou nos seis anos e meio em cativeiro

O relato dos seis anos e meio que Ingrid Betancourt passou como refém das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) é uma desforra. Contra a brutalidade dos guerrilheiros, a inação do governo e, principalmente, as mentiras e delações dos próprios colegas de sequestro. O fato fica ainda mais evidente por Não Há Silêncio Que Não Termine (Companhia das Letras) ter sido lançado depois de Out of Captivity: Surviving 1,967 Days in the Colombian Jungle , em que três militares norte-americanos – Marc Gonsalves, Keith Stansell e Tom Howes –, libertados junto com Ingrid, a descrevem como uma mulher ar­­rogante e egoísta. Ela rebate os ex-colegas de cativeiro situação a situação.

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A ex-senadora franco-colombiana, raptada em 2002 quando disputava a Presidência da Colômbia, não doura a pílula em relação a qualquer uma das pessoas com quem compartilhou o suplício.

Nas primeiras 200 das 553 páginas, a vítima desse raio x do cativeiro é Clara Rojas, colaboradora de campanha sequestrada junto com Ingrid. As duas se afastam rapidamente quando passam a dividir o mesmo teto – no caso, de zinco, em chão de terra batida e com fossas ao ar livre, repletas de insetos e moscas por banheiro.

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Um ano e meio depois, quando são transferidas para um campo de concentração em plena Amazônia colombiana e Clara engravida de propósito de um guerrilheiro, o foco passa a ser a insana relação delas com um grupo maior de reféns.

Num espaço físico mínimo, em uma situação limite, a tese de Thomas Hobbes (1588-1679) de que o ser humano é essencialmente mau sai fortalecida. Movidos pelo ciúme despertado por Ingrid ser a refém mais importante das Farc, fato constantemente repetido pelas transmissões de rádio a que os presos têm acesso, os colegas rejeitam a liderança natural de Ingrid e, segundo ela, a hostilizam desde o início. É quando chegam Gonsalves, Stansell e Howes, que, mesmo sem falar espanhol, entram no jogo.

A campanha do chanceler francês Dominique de Villepin, amigo de Ingrid, e posteriormente do presidente Nicolas Sarkozy por sua libertação só amplifica o desprezo que os demais reféns sentem por ela. Segundo Ingrid, era preciso se manter alerta todo o tempo para não cair em armadilhas dos colegas em conluio com os raptores.

É surpreendente, contudo, que a autora gaste mais linhas nessa espécie de revanche contra os ex-companheiros do que falando dos guerrilheiros que a sequestraram, apesar de ela os descrever em toda sua brutalidade. Inclusive, fica, ao fim da leitura do livro, a impressão de que Ingrid criou mais afinidade com os integrantes das Farc do que com os companheiros de cativeiro. Alguns rebeldes são apresentados como ótimas pessoas, com quem ela faz amizade. A maioria das mulheres guerrilheiras é descrita como muito bonita e incrivelmente bem arrumada para um acampamento no meio da selva amazônica.

Mas Ingrid não passa ao leitor uma visão idealizada das Farc. Já no primeiro dia, ao saber que o termo usado para chamar os militares é chulo (abutre), ela decide: "Daqui para a frente, vou ficar sempre do lado dos militares".

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Harry Potter

Antes do sequestro, Ingrid havia participado de negociações de paz com os líderes da Farc, apertado suas mãos, mas isso não lhe conferiu qualquer imunidade, nem contra o sequestro, nem contra os maus tratos que sofreu no cativeiro.

Para sorte do leitor curioso, Ingrid revela muito no livro, fala bastante, apesar de uma das duras lições aprendida na selva ter sido a de se calar. Durante os primeiros anos, ela usou a língua feroz como arma para manter a dignidade diante dos captores. Com dificuldade, percebeu que a ironia só tornava ainda piores as condições em que se encontrava e até reduzia as chances de sua libertação.

De resto, Não Há Silêncio Que Não Termine é um manual de sobrevivência física e emocional de uma refém. Ingrid descreve a fabricação de cintos, de roupas e aulas de francês – ou de qualquer outra coisa – que ministrava se alguém lhe pedisse. Implorava para entrar na cozinha guerrilheira e preparar um bolo no dia do aniversário de seus filhos. Também precisava se lembrar constantemente de que estava presa contra sua vontade e não como castigo por algo que houvesse feito.

Entre as estratégias de sobrevivência, uma das mais efetivas foi a leitura de um dicionário enciclopédico (tudo o que pedia ao secretariado das Farc acabava chegando às suas mãos). De início, envergonhou-se em ler a série Harry Potter, mas logo foi seduzida. Era a única fuga possível.

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Com tanta ação e intriga, a produtora hollywoodiana Kathleen Kennedy (vencedora do Oscar por A Lista de Schindler), que negocia os direitos de adaptação do livro para as telas, não precisará tirar nem pôr qualquer detalhe para fazer um filme de sucesso.

Serviço:

Não Há Silêncio Que Não Termine. Ingrid Betancourt. Companhia das Letras. 560 páginas. R$ 45. Biografia.