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O cineasta Carlos Reichenbach não se interessa por meios-termos nem pelo bom gosto. É um artista que aprecia os extremos, o oito e o oitocentos, e gosta de jogar com eles tanto como cinéfilo quanto como diretor de cinema. É dono de uma filmografia pessoal e inquieta, que tenta, como ele mesmo define, conjugar o repertório popular e o erudito. Com 14 longa-metragens, construiu uma das carreiras mais respeitadas do cinema brasileiro.

Nasceu em 1945, em Porto Alegre, no berço de uma família de editores e industriais gráficos. Um ano depois, mudou-se para São Paulo, onde descobriria o cinema nos velhos "poeiras", como eram chamadas as antigas salas da cidade. A incursão, em 1965, na Escola Superior de Cinema São Luiz foi decisiva para que ele se definisse como diretor de filmes, graças à influência de mestres como Roberto Santos, Paulo Emílio Salles Gomes, Décio Pignatari, e, principalmente, Luis Sérgio Person. Embora não fossem estudantes, Rogério Sganzerla, Jairo Ferreira, José Mojica Marins, Ozualdo Candeias, Fauzi Mansur e outras figuras do circuito de cinema emergente de São Paulo – a base do dito "cinema marginal" – freqüentavam a escola.

O diretor estará em Curitiba na próxima quinta-feira, às 20 horas, no Teatro do Sesc da Esquina, para apresentar a cópia restaurada de Filme Demência, que considera uma de suas obras mais pessoais. Em 1985, o longa foi laureado no Festival de Rotterdam, na Holanda, como o filme inovador do ano. Na entrevista a seguir, o cineasta opina sobre o cinema brasileiro, critica a recente produção argentina e elogia a da tevê norte-americana.

Caderno G – Agora, em 2006, o que tem o interessado mais no cinema brasileiro?

Carlos Reichenbach – Tem vários filmes que têm me impressionado muito. Eu gostei muito do filme do Nelson Pereira dos Santos (Brasília 18%).

Que é um filme no qual a crítica tem batido tanto...

Mas a crítica é o que menos me interessa, porque ela está sempre vendo tudo com atraso. Aquela de plantão é a pior possível. Ela vai sempre enxergar com atraso. Você precisa de distanciamento. E, com o Nelson Pereira, há sempre essa cobrança exagerada. Acham que ele tem de fazer As Memórias do Cárcere pelo resto da vida. Eu, ao contrário, achei Brasília... um filme extraordinário. Gostei de Árido Movie, Boleiros 2, que são filmes que têm me surpreendido.

E o cinema latino-americano, especialmente o argentino, que é muito bem falado?

Não me impressiona. Inclusive, entrei em uma polêmica porque eu não consegui assistir até o final à Menina Santa (direção de Lucrecia Martel). Achei uma ba-baquice esse negócio de que o cinema argentino é melhor do que o brasileiro. Ainda não surgiu nenhum cineasta argentino tão transgressivo quanto Jorge Polaco. Para mim, o cinema argentino continua sendo Eliseo Subiela. O melhor filme que eu vi nos últimos 20 anos foi As Últimas Imagens de um Naufrágio, de Eliseo Subiela, que faz um cinema literário, de uma força extraordinária. Nenhum desses novos filmes argentinos me impressiona. Parecem com o cinema brasileiro tipo exportação. Cidade Baixa, essas coisas... Cadê os novos Jorge Polaco? Cinema argentino para mim é isso, Alejandro Agreste, Subiela, Jorge Polaco. Tem filme comercial, que parece, no fundo, vestibular para fazer filme em Hollywood.

Algo que o próprio cinema americano dito independente parece ter virado, em parte. Um portfólio para se conseguir emprego nos grandes estúdios.

Exato. Eu já falei que hoje o melhor da produção independente americana está na televisão. Não é para menos que (Quentin) Tarantino vai fazer o seriado CSI. Não é para menos que Ted Kotcheff está dirigindo Law and Order Special Victims Unit. É um cineasta canadense que fez um filme extraordinário na Austrália, chamado Pelos Caminhos do Inferno, que dirigiu o primeiro Rambo, o melhor da série. Hoje, o grande espaço de liberdade é o seriado de televisão, porque eles têm de filmar muito rápido e os executivos não ficam enchendo o saco. A produção não está mais nas daqueles produtores malucos, jogadores, mulherengos, que ficavam fumando um charuto. Está nas mãos de executivos de Armani, que apenas enxergam a análise de mercado e para quem o filme é o produto menos importante. O melhor da produção independente hoje está na produção rápida, como sempre esteve. Teve uma época em que a produção mais relevante era a de Roger Corman, que era feita rápido, para drive-in, que é de onde saiu Martin Scorsese, Peter Bogdanovitch, Francis Ford Coppola. Todos eles passaram pela escola do Corman. Mas ele mesmo disse para mim, em uma entrevista, feita junto com o Inácio Araújo, que o único gênio que passou na mão dele chamava-se Alan Arkur, hoje produtor executivo da série Crossing Jordan (exibida no Brasil pelo canal pago Universal). Assim como em um determinado período da década de 60, a televisão hoje está sendo uma saída para diretores independentes, porque o cinema virou coisa de executivo.

Há coisas no cinema atual que levam a pensar que cada corte parece ter sido submetido a uma pesquisa de mercado.

É coisa para retardado mental. Complementando o que eu estava dizendo, a maior afronta é dizer que o cinema argentino é melhor que o brasileiro. Acho isso acho uma afronta, uma ofensa até. Porque nesse cinema argentino que está aí, não tem nada de novo. E estou falando desse cinema mais recente. São filmes narrativos, comerciais, são filmes "artísticos", entre aspas. Eu gosto do filme do Nelson Pereira dos Santos e estou me lixando pela opinião dos outros. Eu gosto de Árido Movie. São todos filmes de alto risco. O filme do Ugo Giorgetti (Boleiros 2), que é talvez um dos filmes mais pessoais já feitos, que não é para público, não é para ninguém. Mas é para ele. E é claro que isso é universal. Dá de dez a zero nesse cinema de exportação feito na Argentina. No Brasil também tem esse tipo de cinema, que é o cinema que faz efeito aí, pela mídia, o cinema novo rico, o cinema feito para dar certo. Como em qualquer expressão artística, uma obra sem risco é morta. Talvez a síntese seja essa. Ficam falando de mercado. Nem o filme Dois Filhos de Francisco se pagou até hoje. Fica esse endeusamento do borderô, e isso é a morte da arte.

Como surgiu seu interesse pelo cinema extremo?

Na verdade, houve um interesse sempre por um teor de transgressão da arte. Isso foi uma coisa que me moveu a fazer cinema, e, desde a adolescência, é algo que me interessa na arte em geral. Qualquer tipo de obra que fuja aos padrões, quebre tabus e regras. Acho que eu enxergo o cinema como arte da transgressão. Você precisa perder todos os preconceitos, as regras de bom-mocismo, de qualidade, de bom gosto. O que ficou muito claro para mim, de um momento para o outro, foi muito advindo da internet. Porque o espaço virtual tem bem mais liberdade que qualquer outro, que a mídia tradicional. Começaram a aparecer manifestações que publicamente não surgiam na mídia, descobriram que cineastas considerados de quinta categoria, de mau gosto, também tinham seus cultuadores. Joe d’Amato, Jesus Franco e Tinto Brass têm cultuadores! Para mim é como se fosse aquilo que Martin Scorsese chama de guilty pleasures, prazeres culpados, cineastas dos quais já gostava há muito tempo. Alguns amigos tinham até vergonha de dizer: "Tá louco, vai gostar de um cara desse?". Na primeira vez em que eu vi À Meia Noite Levarei Sua Alma, fiquei fã do Mojica, mas isso tinha de ser dito à boca pequena, porque, caso contrário, as caras ficavam olhando feio para a gente. Como ele, alguns dos cineastas mais interessantes são formados por instinto, pela vida, e não com a minha formação, burguesa e intelectual. Afinal, sou filho de editor e leio desde os seis anos de idade, obsessivamente. Não tenho 12 graus de miopia impunemente. Mas é uma coisa que está retratada muito nos filmes.

No que tem trabalhado agora? Recentemente, vi uma lista de filmes notáveis. Ela será publicada?

Está sendo escrito ainda, porque a alguns filmes eu não tive acesso, não pude revê-los. Estou atrás de alguns como Faccia a Faccia, de Sergio Sollima. Não adianta escrever sobre uma coisa que ainda está lá atrás, na memória. O que não consegui completar na lista são os títulos que não consegui rever. Hoje você tem várias formas de fazer isso, até baixando da internet. O Místico, de Bernard Vorhaus, por exemplo, eu baixei da internet. No livro, falta rever e escrever sobre mais uns dez filmes.

E sobre os teus filmes, alguma coisa em andamento?

Tem um final de aporte, para poder começar um filme que já era para ter sido feito há um ano e meio, que se chama Lucineide, a Falsa Loura. É o segundo filme sobre o universo da mulher operária.

É uma continuação de Garotas do ABC?

É outra coisa completamente diferente, mas trata do mesmo universo, também da operária têxtil. É um musical brega. Tem outros projetos e esse é o mais imediato, para o qual já temos captados 80% do dinheiro. Mas falta esse aporte final para podermos começar a filmar.

Serviço: Exibição da cópia restaurada do Filme Demência, com presença do diretor Carlos Reichenbach. Teatro do Sesc – Sesc da Esquina (R. Visconde do Rio Branco, 969), (41) 3322-6500. Dia 22 de junho às 20 horas. Informações: www.my.opera.com/kinoglaz

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