Mainardi com Tito (esq.) e Nico: relação de pai e filho é narrada com sinceridade e humor| Foto: Reprodução

"Diagnosticaram uma paralisia cerebral em meu filho de sete meses. Vista de fora, uma notícia assim pode parecer desesperadora. De dentro, é diferente. Foi como se me tivessem dito que meu filho era búlgaro. Se eu descobrisse que meu filho era búlgaro, minha primeira atitude seria consultar um almanaque em busca de dados sobre a Bulgária: produto interno bruto, principais rios, riquezas minerais. Foi o que fiz com a paralisia cerebral."

(...)

"Considero-me um escritor cômico. Nada mais cômico, para mim, do que uma expectativa frustrada. Expectativa frustrada no progresso social. Expectativa frustrada nas descobertas da ciência. Expectativa frustrada na força do amor. Eu sempre trabalhei com essa ótica anti-iluminista. Agora mudei. Passei a acreditar na força do amor. Amor por um pequeno búlgaro."

Trecho de A Queda, página 62.

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Quando o jornalista, escritor e tradutor Diogo Mainardi – conhecido por suas colunas na revista Veja e por sua participação no programa Manhattan Connection, da Globo News – estava prestes a se tornar pai, contemplou a fachada da Scuola Grande di San Marco, em Veneza (Itália), onde seu filho nasceria, e, ao mesmo tempo maravilhado com a arquitetura de Pietro Lombardo, projetada em 1489, e temeroso com o grande número de erros médicos que davam má fama ao lugar, disse: "Com essa fachada, aceito até ter um filho disforme".

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É assim que começa o sincero e circular relato de A Queda – Memórias de Um Pai em 424 Passos, em que Mainardi conta, desde o começo, sua relação com Tito, seu primogênito, diagnosticado com uma paralisia cerebral graças a um erro médico – uma amniotomia, procedimento usado para acelerar o parto: era sábado e a obstetra queria terminar a jornada mais cedo. O comentário de Mainardi se realizou: Tito, hoje com 11 anos, fala e anda com dificuldade, após anos e anos de fisioterapia custosa que lhe auxiliou a desenvolver uma certa independência. A luta de Mainardi para com­preender a doença do filho passa por uma lição de arquitetura renascentista, eugenia nazista e casos célebres de paralisia cerebral, enquanto vai imputando, pelo caminho, culpa sobre a condição de Tito em quem aparece pela frente.

O livro é narrado em 424 anotações e imagens que são costuradas pela obsessão de Mainardi sobre o tema. "Eu sou o Claude Monet da paralisia cerebral. Tito é minha vitória-régia. Ele se tornou meu único tema. Só me dedico a ele (...). A matéria nunca se esgota", afirma o autor numa escrita que transita entre um registro alucinado e sóbrio, sério e cômico, bem característico das colunas do escritor na revista Veja – espaço, aliás, que dedicou várias vezes a seu filho.

Significados

As palavras e as imagens em A Queda ganham múltiplos significados. A própria queda a que Diogo Mainardi se refere no título tanto tem a ver com a inevitável queda que Tito sofre ao caminhar sozinho por algumas dúzias de passos quanto com as quedas cômicas de Lou Costello, da dupla Abott & Costello, com quem faz outra dúzia de relações, ou ainda com a queda metafórica da obsessão do autor com a condição do filho. Tito nasceu verde, o monstro de Frankenstein era verde, James Stewart no filme Um Corpo Que Cai tem uma cara verde, personagens ligados para sempre por um mínimo detalhe e um esperto jogo de palavras do escritor, que, como sempre, arruma ainda duas ou três páginas para falar de Lula.

Como os passos cambaleantes de Tito, os passos de Mainardi são sua forma de explorar um mundo circunscrito à paralisia cerebral. Um relato-catarse que encontra paralelos na premiada obra de Cristovão Tezza, O Filho Eterno, e do japonês prêmio Nobel, Kenzaburo Oe, Uma Questão Pessoal. O fato de esses livros narrarem a relação de um pai impotente com um filho em visível necessidade de auxílio e compreensão não é o único elo de ligação entre eles. Antes de tudo, é o uso da literatura para tratar de questões pessoais que, de tão grandiosas para os escritores, perpassam as salas de psicanalistas e discussões privadas. São as palavras escritas que substituem o apoio espiritual, a narrativa emocional que toma o lugar dos acessos de loucura. A arte que nada julga e a tudo absolve. GGG1/2

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