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Doutor em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo e pesquisador, Raul Antelo é uma referência dentro dos estudos de modernismo. A seguir, em entrevista concedida por e-mail, o professor da Universidade Federal de Santa Catarina comenta, da genialidade à religião, vários temas ligados a Rimbaud, o poeta que influenciou os escritores modernistas do Brasil.

Mito evasivo

Toda literatura é, de algum modo, póstuma e derradeira. O escritor contemporâneo se reconhece como o último leitor, mas intui também que só esse último leitor pode, cabalmente, ambicionar ser escritor. Há aí operando uma fantasmagoria, a do pecado original. Então, do fundo do naufrágio, volta-se a Rimbaud, ao mito evasivo, estudado por Furio Jesi ou Yves Bonnefoy. Alain Badiou vê, em Rimbaud, um exemplo acabado de inestética, na linha de Mallarmé, Pessoa, Beckett ou Celan; mas nunca de Hugo, Baudelaire, Verlaine, Reverdy ou Aragon, poetas muito narrativos ou expressivos.

Mário de Andrade, que confessava estudar a lição Rimbaud, disse que Rimbaud não foi um indivíduo bem dotado para a arte, nem esta se desenvolveu necessariamente nele. Teve golpes geniais, "O Barco Bêbado", umas poucas "Iluminações", a "Temporada no Inferno".

Gênio

A diferença entre os gênios literários (e quaisquer outros...) e Rimbaud, está em que aqueles metodizam o lirismo interior, desenvolvem as suas qualidades intelectuais, e por isso não se estiolam. A genialidade deles se torna por isso dotada duma espécie de constância, que permanece a vida toda, e só tem os desfalecimentos inerentes aos próprios fenômenos psicofísicos da existência humana.

A bem dizer, todos os seres humanos que passeiam neste momento na Rua Quinze, são gênios estiolados... Como Rimbaud. Ele é o caso característico do menino espertinho: brilha muito e vira povo depois. Um mimetismo exacerbado que a serviço duma sensibilidade enorme, o transformou de menino espertinho em menino-prodígio. Era um impulsivo, um enfant de colère. Era inteligente? Se quiserem, era. Mas uma inteligência sem fatalidade, uma inteligência disponível, sem propensão para um determinado município da criação intelectual.

Abandono

Rimbaud publica, então, o seu primeiro livro de versos que passa inteiramente despercebido. Tem má reputação. Alguns já fogem dele. Não luta. Se desinteressa de repente de tudo e quer abandonar a literatura. Mas na verdade a literatura é que o abandona. Rimbaud está com 18 anos, idade em que o moço principia se refazendo das fraquezas naturais deixadas pelo crescimento, idade de normalização do ser, em que o princípio fecundado, o homem, calmamente devora o princípio fecundador, a criança. Era um impulsivo. Continuará impulsivo. Era um aventuroso. O será sempre. Era inteligente? Terá sempre a inteligência burguesa de um homem comum. Aprenderá várias línguas, o que não é nenhuma África. Assimilará fácil. E não escreverá nunca mais. Era um ser fatalizadamente artista? Normalmente artista? Era psicologicamente um poeta? Penso que não.

Todas as suas qualidades e defeitos permanecem, transformados apenas pelo manejo da idade e das circunstâncias da vida. Mas não escreve mais versos nem constituições, e não terá mais golpes de gênio através do tempo. Teve-os na anormalidade do menino-prodígio, mas o menino-prodígio se acabou. Ficou o homem quase normal, como todos nós, e sem gênio, fisicamente forte, possante mesmo, dizem. Que será o caixeiro-viajante, empregado de escritório, negociante de café, eu, tu, ele.

Cristão

Apesar do testemunho de Isabelle Riviere, sua irmã, segundo o qual o vidente das "Iluminações" teria se confessado e comungado na hora da morte – e que necessidade teria essa criatura de mentir em tão grave assunto – os céticos têm direito de duvidar, achando que na semi-inconsciência da agonia tudo é possível… Mas o fato é que a obra de Rimbaud está toda impregnada de um profundo sentimento cristão.

Nesse livro sombriamente, desesperadamente cristão que é "Uma Temporada no Inferno", não desse cristianismo adocicado de (François) Coppée ou (Francis) Jammes, mas do cristianismo catastrófico de certos místicos da Idade Média, que força religiosa, que intuição do martírio e do sacrifício! As palavras famosas – "changer la vie" (mudar a vida) – são as que São Paulo aplica ao cristão que deve deixar o homem velho – o homem formalista, o fariseu, que Rimbaud justamente detestava – para se revestir do homem novo, que enxergava todas as coisas à luz de Cristo, e assim transformar a sua vida e a do seu próximo.

E a confissão definitiva, que só um espírito católico poderia fazer, a de que a solução de seu problema estava na caridade: "La charité et cette clef" (a caridade é chave), diz textualmente. Não a pretensiosa e artificial caridade filantrópica – burguesa ourocratizada, mas a caridade que é a própria essência divina pela qual o homem participa da Divindade – o amor universal que impulsiona o homem a se despojar do seu egoísmo e a transfundir-se nos outros…

Não preciso de me referir em detalhes a diversas partes das "Poésies" como "Les Pauvres à l’Église", "Les Soeurs de Charité" ou "Les Premières Communions" ou àquele magnífico poema "Génie", das "Iluminações", que se refere evidentemente ao Cristo. Porque um livro como "Uma Temporada no Inferno", que determinou a conversão de Claudel (é verdade que Breton considera-o um imbecil…), é suficiente para datar com vigor o espírito cristão de um poeta.

Desejos

E mais perto de nós, o crítico italiano Franco Rella, em seu livro Georges Bataille, Filósofo, parte da ideia de Rimbaud mudo, afásico, alguém que renunciou à literatura, para dizer que a literatura, quando, apesar de tudo, ainda subsiste, procede cancelando-se, e opera como opera o tempo, que, dos seus edifícios multiplicados, só deixa subsistir os traços da morte. Nessa linha de abandono, que poderíamos interpretar como a do ser jogado ao bando, degradado na sua vida nua, o escritor argentino César Aira, um dos tantos que quis ser Rimbaud, diz que, por incrível que pareça, os desejos mais loucos e irrealizáveis estão se tornando realidade em nossas vidas, ou seja, em Rimbaud.

Não como história, nem como filologia, e nem mesmo como crítica literária, mas como um procedimento, um dispositivo (dis-positivo, um mecanismo de negatividade) que transforma o mundo em mundo, o mundo em si mesmo, ou seja, em pura imanência. E os escritores, em Rimbaud.

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