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Fábio Assunção no papel de Herivelto Martins e Adriana Esteves como Dalva de Oliveira: microssérie de cinco episódios com rigor detalhista na reconstituição de época | Divulgação
Fábio Assunção no papel de Herivelto Martins e Adriana Esteves como Dalva de Oliveira: microssérie de cinco episódios com rigor detalhista na reconstituição de época| Foto: Divulgação

As emoções nas "ondas do éter"

Rio de Janeiro - Foi a melhor época, foi a pior época, foi a era da sabedoria, foi a era da insensatez, foi a época da crença, foi a época da incredulidade, foi a estação da luz, foi a estação das trevas — é Dickens falando da Revolução Francesa, mas pode se aplicar também à Era do Rádio no Brasil, aqueles anos de definição da nacionalidade sob a ambígua "ordem" getulista à beira do cataclisma global.

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Casais desafinados

Para promover Dalva e Herivelto, a Globo publicou um anúncio quase de página inteira

- Com fundo vermelho, a propaganda convoca o telespectador a conhecer "o casal que deu origem à série de casais polêmicos da música"

- Polêmico é um eufemismo para casais que se estraçalham em público. Investindo num caso mais recente, o anúncio menciona Rihanna e Chris Brown, que ocuparam as manchetes em 2009. Na noite da entrega dos Grammies, o cantor tentou estrangular a cantora, gritando que ia matá-la

- Outra relação tumultuada, a de Johnny Cash com June Carter, ganhou destaque com o filme de 2005, Johnny & June.

- Outro "barraco" notório foi entre Ike & Tina Turner

- Os desentendimentos da dupla pop Sonny (Bono) & Cher também são lembrados

- Dissonâncias mais graves foram as de Kurt Cobain e Courtney Love, da Geração X: em dois anos de casamento, viveram o inferno das drogas e ele se matou com um tiro de espingarda aos 27 anos

- Há ainda a tragédia do "Romeu e Julieta do Punk", Sid Vicious e Nauseating Nancy (Spungen), num pacto suicida: morreram em Nova York, ela aos 20 anos com uma facada na barriga; ele, seis meses depois, aos 21, de uma overdose de heroína

Rio de Janeiro - Brigas de casal no mundo da música não são novidade. O que marcou a guerra conjugal entre Dalva de Oliveira e Herivelto Martins foi a troca de acusações pública usando sua principal ferramenta de trabalho: a canção. Grandes composições surgiram deste duelo que trazia uma gota de sangue em cada verso: "Errei sim,/ Manchei o teu nome./ Mas foste tu mesmo/ O culpado." ("Errei Sim", de Ataulfo Alves). "E a culpada foi ela./ Transformava o lar na minha ausência/ Em qualquer coisa abaixo da decência." ("Caminho Certo", de Herivelto Martins e David Nasser). "Tudo acabado entre nós, já não há mais nada./ Tudo acabado entre nós, hoje de madrugada." ("Tudo Acabado", de J. Piedade e Oswaldo de Oliveira Martins). "Teu mal é comentar o passado./ Ninguém precisa saber o que houve entre nós dois./ O peixe é pro fundo das redes, segredo é pra quatro paredes." ("Segredo", de Herivelto Martins e Marino Pinto) "Eu não quero mais nada./ Só vingança, vingança, vingança/Aos santos clamar./ Ela há de rolar como as pedras/ Que rolam na estrada./ Sem ter nunca um cantinho de seu/ Pra poder descansar." ("Vingança", de Lupicínio Ro­­drigues.)

A TV Globo, estimulada pelo sucesso da minissérie Maysa, acordou para o potencial melodramático da história de Dalva e Herivelto e lança, na primeira semana de janeiro, Dalva e Herivelto – Uma Canção de Amor, escrita por Maria Adelaide Amaral e dirigida por Dennis Carvalho. A microssérie ofereceu uma oportunidade para a Globo explorar todos os seus recursos de talento e de técnica, reconstituindo uma época fascinante, que abrange cinco décadas (de 1930 a 1970) e revive os anos dourados da Era do Rádio, tão marcantes para o inconsciente coletivo brasileiro. Maria Adelaide Amaral admite: "Para um escritor, é uma história irresistível, com todos os ingredientes: paixão, traição, ciúme, agressão e momentos de alta dramaticidade". Dennis Carvalho usou a fotografia para marcar nuances emocionais na vida do casal: "Nas décadas de 30, 40 e 50, a fotografia é mais quente, mais dourada. Nas décadas de 60 e 70, a fotografia é mais fria, azulada, para indicar o início da decadência da relação de Dalva e Herivelto".

Dalva (nascida Vicentina Paula de Oliveira, em Rio Claro, SP) conheceu Herivelto em 1936 quando ela cantava no Teatro Pátria, no Largo da Cancela, no bairro carioca de São Cristóvão. Tinha 19 anos e ele 24. Imediatamente, Herivelto a incorporou à dupla Preto e Branco, que formava com Nilo Chagas, formando o Trio de Ouro. Seria uma combinação irresistível e um sucesso estrondoso num mundo dominado pelas rádios e pelos cassinos. O Trio de Ouro gravou uma centena de discos e teve suas duzentas canções na ponta da língua dos fãs. Às vezes o grupo cantava na mesma noite no Cassino da Urca, deslocava-se para o Cassino de Icaraí, em Niterói, e voltava para um último show no Cassino da Urca. Fama e fortuna colocaram o casal no foco das atenções. Quando Dalva, a Rainha da Voz (gravou muitas músicas com o Rei da Voz, Francisco Alves), teve sua primeira gravidez, o nome do filho foi escolhido por votação dos fãs, na Rádio Mayrink Veiga: Pery, que ficaria conhecido como o cantor Pery Ribeiro. (O Trio de Ouro tinha gravado na época a canção "Ceci e Peri".) Apesar do sucesso, Dalva continuou uma mulher simples preenchendo fielmente as tarefas domésticas. Nas festas depois dos grandes shows, fazia macarronada para um batalhão de convidados. No auge da carreira, uma equipe da Revista do Rádio que foi entrevistá-la a encontrou lavando as escadas de sua casa.

Herivelto era o clássico galã da época, louco por um rabo de saia, e as tentações rondavam os auditórios das rádios e os salões dos cassinos. Cada aventura sua provocava uma briga avassaladora, seguida por uma reconciliação espetacular. Tudo isso era matéria para os grandes jornais da época. As crises de ciúmes levaram Dalva à bebida. Herivelto de repente teve uma paixão fulminante por uma aeromoça e quis casar com ela. O fim do casamento, pessoal e profissional, ocorreu numa desastrada turnê do Trio de Ouro pela Venezuela, em 1949, por sugestão de Dercy Gonçalves (interpretada por Fafi Siqueira na série). Dalva e Herivelto é narrada em flashback, a partir de 1972, quando Dalva, pouco antes de morrer de câncer, em 1972, aos 55 anos, recapitula num leito de hospital os principais momentos de sua vida e carreira. Ao colocar lado a lado as fotos de Dalva e de Adriana Esteves, Dennis Carvalho não teve dúvidas na escolha da atriz principal. Também Fábio Assunção foi o ator perfeito para encarnar Herivelto. Recém-saído de uma crise pessoal que o manteve algum tempo afastado do trabalho, ele se atirou de corpo e alma ao papel. Herivelto viveu até os 80 anos e Fábio, para viver o personagem já sexagenário, submeteu-se a uma maquiagem especial, com bigode e cabelos grisalhos e próteses na barriga e no pescoço.

A Globo se esmerou nos detalhes da produção. Reconstituiu, no seu centro de produção (o Projac), o auditório da Rádio Nacional, com as dimensões originais do palco e da platéia, com capacidade para 220 pessoas. Só na concepção e montagem da réplica atuaram 72 profissionais. Os famosos microfones RCA RX44, de 1936, também foram copiados, assim como a sala de espera da Rádio Nacional, com xícaras, garrafas, copos, cinzeiros e exemplares de jornais da época. No início da carreira, Dalva e Herivelto dividiam com o amigo e parceiro Nilo Chagas um quarto num cortiço. A produção de arte usou roupas, móveis e baús envelhecidos, garimpados no acervo da Globo e em antiquários. "Fizemos colchões antigos, de crina, e os forramos com panos listrados," diz a produtora Ana Maria Magalhães. "Para dar um aspecto de ‘surrado’, usamos café e banhos de chá que criam uma coloração de envelhecimento."

O mesmo rigor se aplicou às vestimentas. Marília Carneiro, figurinista principal das novelas da Globo, recorreu como fonte de pesquisa à Revista do Rádio e criou, só para Dalva, 92 trocas de roupa ao longo da série. Diz Marília: "Só copiamos um vestido deslumbrante de lamê verde de um ombro só; o restante das peças, criamos".

É difícil saber até que ponto este rigor detalhista na reconstituição de época será percebido ou valorizado pelo telespectador. De qualquer modo, ele serve para indicar o cuidado e o amor com que foi rodada esta série sobre o casal que marcou, a ferro e a fogo, a história da música popular brasileira.

Serviço

Dalva e Herivelto – Uma Canção de Amor. Microssérie em cinco episódios estreia na próxima segunda-feira, dia 4, e será exibida ao longo da semana, sempre depois da novela Viver a Vida (por volta das 22 horas).

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