A jornalista Xinran é hoje uma das escritoras que melhor explicam a China| Foto: Bel Pedrosa/Divulgação

Raramente um livro tem um destinatário tão claro quanto em Mensagem de Uma Mãe Chinesa Desconhecida. A autora, Xinran, trabalhou como apresentadora do programa de rádio Palavras na Brisa Noturna, onde entrou em contato com uma realidade do meio rural chinês que lhe era quase tão desconhecida quanto é para nós: o abandono e assassinato de bebês do sexo feminino.

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Depois de conhecer o contexto de inúmeras famílias, ela decidiu contar algumas dessas histórias, destinadas a responder ao clamor de mais de 100 mil meninas chinesas adotadas por famílias ao redor do mundo: "Por que minha mãe não me quis?". A esperança dela era que os relatos pudessem consolá-las.

São histórias como a do casal do interior que recebeu da família o prazo de dez anos para voltar para casa com um herdeiro homem. Rodaram a China como nômades, fugindo da vergonha na terra natal, enquanto tinham uma menina atrás da outra – que deixaram pelo caminho. O mais chocante é que Xinran vira o pai aninhando a menina de quatro anos na sua frente, num trem, para depois deixá-la sozinha na plataforma e seguir viagem. Crianças como essa, ela conta, eram roubadas para fazer trabalhos forçados e servir como noivas ou ganhavam pais adotivos no exterior.

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Outro relato é de uma moça de família rica sem orientação sexual que engravidou de um professor na universidade e foi obrigada pelos pais a deixar a filha num hospital – eles imploraram que ela não lhes impusesse a vergonha de envelhecer com uma filha mãe solteira.

Dentro de uma choupana, após ouvir os gritos de parto de uma mulher, a própria Xinran viu a parteira ir embora, deixando cair uma bebezinha num balde de água suja.

Em todos os encontros que teve com mulheres que deixaram suas filhas para trás, Xinran se comoveu com as valas abertas deixadas no coração delas.

Raízes históricas

A jornalista é incisiva em sua crítica ao regime chinês que, apesar da abertura política iniciada nos anos 90, ainda censura a imprensa, mantém informações secretas e a política do filho único – agora em processo de revisão.

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Mas ela não localiza no controle populacional imposto de cima para baixo a partir de 1978 a única razão para a aceitação da crueldade. "Bebês do sexo feminino têm sido abandonados em culturas rurais do Oriente desde os tempos antigos", ela explica, ao que acrescenta a ignorância sexual ainda muito disseminada entre jovens.

Xinran tam­bém ex­­põe o kafkiano funcionamento de orfanatos na China antes de 1992, quando a adoção internacional recebeu autorização oficial. Ela mesma foi uma vítima da burocracia autoritária nos lares para crianças, e até hoje sofre por ter tido uma criação em que o Estado valia mais que a família.

Se o tema pareceu repugnante, a imersão na cultura rural e urbana chinesa compensa, vinda de uma insider que hoje pode ser considerada uma das vozes que mais divulgam a China contemporânea. Xinran escreveu também As Boas Mulheres da China e As Filhas Sem Nome, entre outros livros. Mora em Londres e lidera a ONG The Mothers’ Bridge of Love ("a ponte de amor das mães", em tradução livre).

Se ainda assim a leitura não pareceu interessante o suficiente, há alguns (poucos) rompantes cômicos, como quando uma chinesa do interior fica preocupadíssima após dar a filha: "Meu sogro disse que eram estrangeiros com olhos coloridos e nariz grande. Parece assustador, as minhas filhas devem morrer de medo!".

Serviço

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Mensagem de Uma Mãe Chinesa Desconhecida, de Xinran. Tradução de Caroline Chang. Companhia das Letras, 268 págs., R$ 42.